“Poorly written”

Quem nunca ouviu essa crítica ao submeter um manuscrito para uma revista top?

Publicar nas melhores revistas nunca foi fácil, mas nos últimos anos isso tem se tornado um inferno, como já comentei em outros posts sobre peer review e respostas a editores. Graças à enorme pressão do “publish or perish” e ao engarrafamento nas revistas causado pelo culto ao fator de impacto, até mesmo falantes nativos de inglês têm sido obrigados a ouvir que seus manuscritos estão mal redigidos. Aqui abordo esse problema por diferentes ângulos.

Partindo do começo, quando um editor ou revisor de uma revista diz que o seu texto está “poorly written” (em português, mal escrito), isso pode significar um monte de coisas. É preciso tentar decifrar a bronca caso a caso, porque muitas vezes os editores não se dão ao trabalho de apontar exatamente as falhas. Com as enormes filas de artigos esperando para ser publicados nas melhores revistas, qualquer coisa pode levar à rejeição sumária de um manuscrito para ajudar a descongestionar o sistema.

Um dos motivos mais comuns para receber o carimbo de poorly written é o inglês do artigo estar ruim mesmo. Infelizmente, muita gente acha que bastam um ou dois anos no cursinho da esquina para dominar o idioma. Épico engano. O inglês, mesmo sendo uma das mais simples línguas ocidentais, encerra um monte de regras, exceções e nuances, além de um rico vocabulário. É preciso dedicar-se com afinco aos estudos por vários anos, a fim de se chegar a um bom nível, ainda mais levando-se em conta o rigor estratosférico dos melhores journals (lembre-se da regra das dez mil horas).

Escrever bem requer técnica e prática, como já dizia o Bruce Lee. Para que você possa se comunicar de forma eficiente com cientistas dos mais diferentes países, é preciso investir pesado no aprendizado no inglês ou então, se você tiver dinheiro sobrando, contratar um bom tradutor científico profissional. Não há escapatória: para poder reclamar depois, antes faça o seu dever de casa.

É claro que injustiças acontecem e, às vezes, alguém com um inglês pior do que o seu resolve criticar o seu manuscrito. Isso, infelizmente, é muito comum em revistas brasileiras. Revisores sabichões chegam a fazer correções que pioram muito o texto. Alguns erros recorrentes, vícios típicos de falantes não-nativos, acabam sendo repetidos por gente com pouco senso crítico, tornando-se praticamente regras gramaticais extra-oficiais.

O pior é que nem os falantes nativos se salvam dos preconceitos linguísticos e alguns casos beiram a bizarrice. Por exemplo, um amigo meu, postdoc britânico, teve seu manuscrito duramente criticado por um editor americano, que disse que o inglês dele era awkward. Já vi isso acontecer mais de uma vez, especialmente com falantes nativos de variantes coloniais do inglês, especialmente de origem africana.

Contudo, pode ser que o seu manuscrito seja rotulado como poorly written por outras razões. A segunda fonte de críticas mais comum é o estilo de redação. Dentro do universo de um idioma há diferentes estilos, variando desde a linguagem que você usa para escrever um recado na geladeira (“é verdade esse bilete“) até uma peça de teatro de Shakespeare, passando pelos artigos técnicos.

A redação científica tem um estilo muito particular, marcado pela objetividade e concisão. Em um artigo científico, é preciso ir direto ao ponto, evitar termos rebuscados, usar a voz ativa e a ordem direta, e economizar nas palavras. Leva tempo até se dominar esse estilo, pois uma boa frase em um texto técnico deve condensar muita informação, mas sem perder a inteligibilidade. Fora isso, nunca paramos de fazer ajustes no nosso estilo pessoal, pois alguns costumes mudam com o tempo e é preciso se atualizar constantemente.

Por isso, quando um editor disser para você “procure um falante nativo para melhorar o seu texto”, não leve isso tão ao pé-da-letra. Primeiro, porque nem todo falante nativo domina o próprio idioma em um nível elevado. Segundo, porque não basta o falante nativo ser um mestre das letras, se ele não tiver prática na redação científica. Terceiro, mesmo um falante nativo culto e versado em redação científica só conseguirá te ajudar substancialmente, se trabalhar na mesma área que você ou pelo menos tiver intimidade com o dialeto usado nela.

Sim, há diferenças de vocabulário e estilo mesmo entre áreas da ciência. Compare por exemplo os textos técnicos da Sociologia com os da Física, ou mesmo os de áreas mais próximas, como a Ecologia e a Botânica. Preocupar-se com esse tipo de minúcia pode fazer toda a diferença na hora de publicar em uma revista top.

Em suma, quanto melhor e mais competitiva for a revista em que você quer publicar, maior deverá ser o seu capricho na redação. É preciso escrever em um inglês gramaticalmente correto e, de preferência, fluido, bem polido. Também é preciso escrever dentro do estilo científico, sem lero-lero.

Não é fácil, eu sei. Mas quem disse que fazer ciência é fácil? E, ainda assim, mesmo tomando todos esses cuidados, nada garante que você não vai cair nas mãos de um editor preconceituoso, que pode lhe dar o carimbo de poorly written antes mesmo de ler o seu texto, ao reparar que o seu sobrenome não é anglo-saxão.

Sugestões de leitura

  1. Writing science
  2. Guia de escrita
  3. Sobre a escrita

(Fonte da imagem destacada)

10 respostas para ““Poorly written””

  1. Duas semanas atrás um amigo me pediu para “dar uma revisada” em um texto de 8 páginas. Tanto eu quanto (e principalmente) minha esposa trabalhamos com traduções e não bastava apenas revisar, mas reescrever tudo. Pedimos p original em português para termos idéia do que a pessoa queria escrever e o problema foi o mesmo já visto tantas vezes: o texto em PORTUGUÊS estava mal escrito.
    Concordo com tudo que você escreveu Marco, e só adciono isso: nem adianta mandar o seu texto tradução se na sua língua nativa você não sabe reler o que escreveu. Traduzir hoje em dia está difícil. Porque antes mesmo de traduzir, às vezes é necessário revisar o texto em português para tentar extrair algum sentido do que o cidadão tentou dizer.

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  2. Muito bom. Aliás, tirando sua obsessão bruceleeneana (tô mais pra kung fu panda), vi vários pontos comuns ao meu discurso para meus alunos. Seu blog é realmente bom e recomendo o acompanhamento! Parabéns

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