A importância da ousadia na carreira científica

Em outro post publicado aqui no blog, tratei da importância da humildade, especialmente para os cientistas “aspiras”. Na época, o Pavel Dodonov fez um comentário, lembrando que, na verdade, talvez muitos alunos sofram do mal oposto: a falta de confiança em si mesmos. Um debate que tive ontem com alunos também me motivou a abordar o tema da humildade por outro ângulo. Nunca vi  estatísticas sobre quantos porcento de cada extremo (arrogantes vs. bananas) há na comunidade científica, mas certamente a humildade em excesso também pode ser prejudicial. Vou então aproveitar o gancho e falar sobre porque cientistas devem ser humildes e ousados na medida certa.

Como eu disse anteriormente, a vaidade é um veneno que tem o potencial de enterrar uma carreira que poderia vir a ser brilhante. Isso porque ela nos cega e faz com que achemos que já chegamos no máximo do nosso potencial, quando na verdade ainda temos muito feijão com arroz para comer. Dessa maneira, é importante para o jovem cientista manter os olhos abertos, escutar os mais velhos na ciência e aprender a tomar medidas corretas de si mesmo.

Só que um cientista não pode ser tão exageradamente humilde, a ponto de nunca questionar nada e apenas seguir ordens e modinhas. Aliás, quem conhece os estudos do Stanley Milgram sabe o quanto pode ser perigoso agir como uma ovelha obediente. Humildade não é sinônimo de subserviência. Ouvir os colegas e manter a mente aberta a críticas e sugestões não significa, necessariamente, acatar todas as sugestões que receber ou, pior, deprimir-se de tanto levar a sério as críticas que ouvir.

Um bom cientista precisa encontrar um equilíbrio entre humildade e ousadia na carreira. Ele precisa aprender a hora certa de obedecer e desobedecer, seguindo a intuição, mas muitas vezes também por tentativa e erro. Em muitos casos, nem estamos falando em desobediência de fato, mas sim de ousadia. Estamos falando da capacidade de vislumbrar novas estradas onde não há sequer uma trilhazinha.

É como diz o velho ditado: “quem anda apenas por caminhos já trilhados chega apenas aonde os outros já foram”. Na ciência, é preciso saber “pensar fora da caixinha”, tentar enxergar velhos problemas por novos ângulos. É assim que os maiores avanços são conseguidos: quando um cientista ousado resolve desafiar os paradigmas vigentes, por notar que eles não explicam bem muitos casos relacionados a um determinado fenômeno. Nesses casos, o cientista ousado busca uma explicação alternativa, criando hipóteses ou teorias verdadeiramente inovadoras.

Neste ponto, alguém pode se perguntar: “mas, Marco, eu sou apenas um reles aluno de iniciação científica, como eu posso quebrar um paradigma?” Oras, muitos expoentes da ciência fizeram descobertas de peso ainda em idades tenras, como por exemplo o Gauss. A sorte favorece a mente preparada, por mais jovem que ela seja. Se você tiver vocação para cientista, uma mente curiosa e, além disso, for estudioso, tem tudo para fazer uma grande descoberta a qualquer momento. Nem é preciso ser um outlier como o Gauss para isso. Boa ciência tem muito mais a ver com curiosidade, estudo e disciplina do que com genialidade. Thomas Edison já dizia que o “o gênio é 1% inspiração e 99% transpiração”. Muitos supostos gênios, que brilham no começo da carreira, no final acabam não dando em nada, por lhes faltar disciplina de estudo e trabalho. De qualquer forma, na maioria dos casos não se trata de fazer sempre descobertas impactantes, mas descobertas de um modo geral, desde aquelas com um escopo restrito até aquelas com um escopo amplo. Todo cientista deveria almejar fazer descobertas, independente do seu estágio na carreira.

Um “aspira”, esteja ele na fase de iniciação, mestrado ou doutorado, deve ousar, por exemplo, tirar conclusões de verdade em seus estudos. É muito comum, especialmente na Biologia, deparar-se com a mentalidade tosca de que “cada caso é um caso” e que, portanto, não devemos nunca generalizar ou fazer inferências mais arriscadas. Tolice. Toda ciência, seja ela natural, humana ou exata, visa tentar entender padrões em termos dos processos que os geraram. Todo projeto de pesquisa, se bem elaborado, deve almejar chegar à um conclusão no final, que represente uma contribuição original para a ciência básica ou aplicada. Trabalhos inconclusivos, seja por má qualidade dos dados ou da elaboração, ou por falta de ousadia do cientista, não servem para nada. Se você pensou em um projeto e gastou tempo, dinheiro e energia para executá-lo, para ao final se limitar a dizer que “mais estudos são necessários”, então sinto muito, mas você desperdiçou seus recursos.

A ciência é uma cultura humana e, como tal, ela também está sujeita a modas e outros vieses sociais. Muitas vezes seus colegas te dirão “isso é assim e pronto” ou “já sabemos isso, não perca seu tempo investigando esse tema”. Desconfie profundamente de quem “já sabe”. Na ciência nunca temos certeza de nada. No máximo, podemos ter certeza sobre fatos, mas mesmo isso depende da complexidade do fato. O ponto é que as interpretações (hipóteses, teses e teorias) estão sempre sujeitas a revisão. Essa postura autoritária pode ser vista especialmente em salas de aula, mas também em laboratórios e congressos. Não estou dizendo para você sair enfrentando todo mundo que mandar você acreditar em alguma coisa. Desconverse, finja que acreditou, evite conflitos desnecessários, mas mantenha a chama da dúvida em sua mente. Se alguma “verdade mastigada” te incomodar demais, corra atrás de uma nova resposta que te convença.

Foque a sua ousadia também em projetos mais arriscados. Hoje em dia, com a paranóia cienciométrica que vivemos, a maioria dos cientistas faz apenas projetos com resultados mais ou menos garantidos, “mais do mesmo”, que possam ser mais facilmente aceitos, de modo a não por seus financiamentos em risco. É bem mais difícil conseguir verbas para projetos realmente inovadores, que saiam das raias do “comum”. Ao invés de repetir fórmulas que os outros inventaram, tente criar suas próprias fórmulas. Pense em novas abordagens para temas já batidos. Se for mesmo criativo, pense até mesmo em temas de estudo inteiramente novos. Não se contente em andar apenas por caminhos já trilhados pelos outros.

Evite ser obediente demais também na hora de dar escrever artigos. Certamente você ouvirá muitos conselhos do tipo “use apenas a voz passiva, porque texto científico tem que ser impessoal”. Há um monte de “verdades” furadas por aí sobre o tema redação científica. Nesse campo, use também a lógica para te guiar, como recomendado pelo Prof. Volpato. Fuja de fórmulas prontas, ouse escrever do seu jeito.

Quando se trata de dar aulas, desobedeça também as verdades prontas sobre educação que circulam aqui no Brasil. Com um pouco de experiência e senso crítico você notará que muitos dos mantras repetidos nessa área não passam de cismas sem base científica. Evite os conselhos dos dogmáticos, profetas de ideologias falidas, e procure ler os trabalhos de cientistas da área de educação que realmente fazem pesquisas e testam idéias na prática. Há muita coisa interessante, e aplicável em sala de aula, sendo produzida também por psicólogos sociais e economistas interessados em educação. Ouse pensar diferente e buscar os seus próprios métodos de ensino.

Outro risco que o excesso de humildade oferece é impedir que você aproveite boas oportunidades. Já vi muitos casos de colegas que deixaram de concorrer a uma bolsa, verba ou emprego excelentes, por acharem que “aquilo era demais para eles”; eles foram derrotados por não tentarem. Já vi até mesmo colegas se inscreverem em concursos para professor universitário, mas depois nem comparecerem às provas, só porque viram o nome de um candidato forte na lista de inscritos. Quem disse que o peso-pesado iria mesmo comparecer à prova? Além do mais, já vi candidatos fortes no currículo perderem um concurso por causa de um mau rendimento na prova didática ou até mesmo por causa de pequenos deslizes, já que diferenças decimais na nota podem decidir quem leva o emprego. Acho que nem preciso me alongar para dizer o quanto esse tipo de “postura amarelona” é tola. Quem disputa algo, mas perde, não é tolo. Tolo é quem se acovarda.

Quero, por fim, enfatizar que o excesso de humildade pode ser tão prejudicial ao jovem cientista quanto a falta de humildade. A ciência é um ofício cujo objetivo é fazer descobertas, produzir conhecimento, pensar coisas que nunca foram pensadas antes. Sem um mínimo de ousadia e de livre pensamento, fica impossível fazer ciência. Nos seus projetos, não se contente em apenas “descrever por descrever” ou “comparar por comparar”. Chover no molhado é desperdiçar sua vida. Pense na ciência como um enorme quebra-cabeças cooperativo. Use a sua energia criativa e a sua disposição para o trabalho para ajudar a encontrar as lacunas no quebra-cabeças, assim como as peças que estão faltando. Isso é ousadia científica.

Termino o post com o seguinte adágio japonês: “se alguém já fez isso, eu também posso fazer; se ninguém nunca fez, posso ser o primeiro”.

Sugestões de leitura:

 

(Fonte da imagem destacada)

15 respostas para “A importância da ousadia na carreira científica”

  1. Ainda sofro um pouco com “medo” de nomes, mas já quebrei muito disso correndo atrás de mestrado e doutorado no exterior. Mandei e-mail pra muito cara foda, e eles me responderam numa boa. Acho que “idolizamos” os caras que tem nome e esquecemos que são gente como a gente (talvez como os não-cientistas se sintam com o ator da novela das 8 ou o vocalista da banda que gostam!).
    Desde então, sempre que alguém me pergunta como as oportunidades surgiram pra mim, eu respondo: bastante cara-de-pau. Recentemente uma colega estava prestes a desistir do doutorado com o orientador referência na área dela, porque estava com vergonha de mandar um e-mail. Não achava que ele fosse dar moral (ou que ela merecesse a moral) de um cara desse nível. Enchi muito o saco dela e, afinal, o cara não só topou, como ficou animadíssimo.
    Realmente acho que o excesso de humildade é dominante entre nós. Muito bom o texto, Marco.

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    1. Marina, você mandou bem! Cara-de-pau é uma coisa fundamental para o cientista contemporâneo. Quanto ao figurão te tratar bem ou não, com a experiência você vê que os melhores caras são geralmente os mais tranquilos. Os medíocres é que precisam se esconder atrás de uma máscara de arrogância.

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      1. Cara-de-pau foi o que me possibilitou ser coorientado por uma das maiores especialistas na minha área e que me possibilitou passar seis meses no Canadá e fazer campo na tundra. Ou seja, é de fato muito importante… 🙂

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  2. Esse texto me fez pensar em algo sobre o meu mestrado (já há dois anos passado), sobre o que me estimulou a fazer a pesquisa que fiz. Antes de começar o mestrado, diversas vezes eu conversei com pessoas sobre efeitos de borda no cerrado, e diversas vezes me disseram que o cerrado é aberto demais para ter efeitos de borda. Isso nunca me satisfez, e fiz o meu mestrado basicamente basicamente buscando mostrar que isso estava errado (tomei essa decisão ao voltar de um campo, duas semanas antes do prazo pra submissão de projeto). Bem, depois que estudei um pouco mais o assunto percebi que, considerando o framework teórico sobre efeitos de borda, não faz sentido pensar que o cerrado não seria sujeito a eles. Mas se eu tivesse aceito a fala de que “não há efeitos de borda no cerrado”, provavelmente teria seguido um caminho diferente e, bem, não estaria agora coletando dados na tundra canadense sob a coorientação de uma das principais pesquisadores de efeitos de borda. 🙂

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  3. Isso é tão verdade que aconteceu comigo recentemente. Meu orientador afirmou que eu não possuía peso científico para enviar os e-mails convidando as pessoas para minha aula de qualificação. Pessoas essas que almoçavam comigo todo dia e até conversavam sobre a diarreia horrível que estavam passando.
    Acho que esse pensamento é algo comum a cientistas com um ponto de vista medieval da ciência. Isso deprime muito quem é empolgado com a ciência e seu orientador. No dia desse acontecido fui para a casa e fiquei pensando que nunca terei os 200 artigos que ele e sempre serei visto como um sem peso acadêmico.

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    1. Anonimo, sabe qual é a melhor forma de conseguir que os colegas mais velhos te tratem como um igual na Academia? Aja normalmente, trate-os com respeito, mas não com deferência e sim de igual para igual. As pessoas, inclusive os cientistas, são como cachorros: quando farejam medo ou hesitação, rosnam.

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