Por causa da nova pandemia da Covid-19, informação errada, desinformação e fake news têm surgido a respeito de morcegos e virologistas. Vamos esclarecer as coisas?
Escrito por Marco Mello & Renata Muylaert, membros da equipe do blog
(Este é o quarto post na nossa série sobre a pandemia de Covid-19)
Vivemos tempos desafiadores.
Já estávamos sendo engolidos por uma crescente onda anti-ciência, que nasceu ainda no século XIX, mas tomou força a partir dos anos 1950, chegando hoje a níveis críticos. Por causa dela, a sociedade vem perdendo progressivamente a confiança na Academia. Em grande parte isso é culpa dos movimentos obscurantistas. Mas em parte também é culpa da nossa inabilidade em explicar o que fazemos a quem paga a nossa conta.
Como se não bastasse essa desvalorização da ciência, de repente chega um novo coronavírus (Sars-Cov-2, vírus zoonótico causador da COVID-19) e torna tudo ainda mais complicado. O pior é que uma complicação dessas precisa de mais ciência para ser resolvida.
Só que muitas pessoas deixaram de acreditar em cientistas.
Além da difamação feita pelos obscurantistas e das nossas falhas de divulgação, outro motivo para essa descrença ou negacionismo é o péssimo hábito que acadêmicos têm de falar mal uns dos outros o tempo todo. Se isso já cria um ambiente tóxico dentro da Academia, imagina então quando se estende para o mundo real?
Disputas de ego podem ter consequências graves. Quando a sociedade vê cientistas desautorizando os trabalhos uns dos outros de maneira leviana, o resultado é ainda menos confiança na ciência.
Nessa onda, uma verdadeira guerra de narrativas começou nos últimos anos. Isso porque aumentou o enquadramento dos morcegos, animais fascinantes, como motivo de preocupação para a saúde pública por parte de virologistas e da imprensa. Essa discussão se intensificou desde que estudos descobriram que morcegos são reservatórios naturais de diversos vírus.
Já sabíamos, por exemplo, da relação entre morcegos e raiva havia décadas. Contudo, mais recentemente a lista aumentou. Dentre os vírus abrigados por morcegos, hoje incluem-se o vírus da raiva, ebolavírus, hantavírus e coronavírus. E, para piorar, também uma variedade de coronavírus geneticamente muito similar à que deflagrou a pandemia atual. Isso, aliado a o estigma que morcegos têm em algumas culturas, pode levar as pessoas a terem mais medo deles.
Contudo, apesar das más notícias, os virologistas estão apenas fazendo o trabalho deles. O que eles produzem não é mera especulação, mas sim estudos sérios em revistas respeitadas. É triste ter que explicar isso, mas infelizmente temos que sair em defesa dos nossos colegas.
Tudo bem, vieses de foco acontecem em qualquer área, incluindo o estudo de vírus em morcegos. É natural que espécies para as quais foram identificados novos vírus sejam alvo de mais investigações do que espécies que ainda não foram estudadas. Ainda mais considerando-se a escassez de recursos para a ciência.
Entretanto, nesses artigos de virologia, a falta de menções aos serviços ecossistêmicos prestados por morcegos não necessariamente reflete o que os virologistas pensam sobre esses animais. Simplesmente porque esse não é o foco desses trabalhos. Também é crucial checarmos as evidências, antes de dizermos que morcegos têm mais vírus zoonóticos do que outras ordens de mamíferos, porque eles seriam “especiais”.
Essa suposta predominância foi rebatida por um artigo recente. Grupos de mamíferos mais diversos contêm naturalmente um maior número de vírus zoonóticos. Isso vale para morcegos (hospedeiros de 22 vírus zoonóticos conhecidos), roedores (hospedeiros de 41 vírus zoonóticos) e os reais campeões nesse campo, que hospedam mais vírus do que o esperado pela sua diversidade (28 vírus zoonóticos): os artiodáctilos (grupo das vacas, cabras, camelos e porcos). Essas são informações que também foram obtidas pelos virologistas.
Apesar da clara importância desses estudos, os ataques aos virologistas, que hoje vemos na imprensa tradicional e na “imprensa alternativa”, começaram dentro de casa. Muitos partiram de outros cientistas a conservacionistas, especialmente pesquisadores de morcegos.
Nós também somos pesquisadores de morcegos, então compreendemos a preocupação dos nossos colegas. É natural que pessoas que amam tanto os morcegos, a ponto de tornarem o estudo deles sua profissão, estejam incomodadas. Elas temem um aumento no preconceito contra esses animais causado por descobertas desconfortáveis. E, de fato, mais gente passou a temer os morcegos, depois que eles foram ligados a doenças emergentes.
Só que essa relação entre morcegos e doenças emergentes não é culpa dos virologistas.
As descobertas feitas por esses profissionais são essenciais para entendermos melhor doenças emergentes zoonóticas que causam endemias, epidemias ou pandemias. E também para entendermos a coevolução entre vírus e outros seres. O surgimento de surtos de doenças, bem como o papel que os morcegos desempenham nesse processo, é um tópico amplo e complexo, que precisa ser cuidadosamente abordado e honestamente discutido.
Logo, precisamos conversar abertamente sobre doenças emergentes. A disseminação de patógenos pode ser prejudicial tanto para as populações de morcegos (por exemplo, no caso da síndrome do nariz branco), quanto para as populações humanas (por exemplo, no caso da raiva).
Só que a culpa por essas doenças zoonóticas tampouco é dos morcegos.
Morcegos são animais magníficos, que desempenham papeis fundamentais em diversas funções ecológicas e serviços ecossistêmicos. Portanto, precisamos conservá-los, nem que seja por puro egoísmo humano. Veja alguns dos vários motivos para isso:

Além de serem vitais na natureza, morcegos sequer são o único ponto na jornada dos vírus que causam doenças. As descobertas feitas por virologistas nos ajudaram a entender que, sim, morcegos servem como hospedeiros naturais.
Entretanto, muitas vezes os eventos de spillover, ou seja, o salto de um hospedeiro não-humano para os humanos, envolvem hospedeiros intermediários e muitas etapas. Em alguns casos, essas pontes entre morcegos e humanos foram feitas por pangolins, camelos ou civetas, dentre outros mamíferos.
Só que os hospedeiros intermediários tampouco são culpados pelo spillover.
Esses saltos que os vírus dão entre hospedeiros acontecem por culpa de nós mesmos, humanos. Atividades que envolvem destruição de habitats naturais, consumo de animais silvestres, manuseio precário de carne, criação intensiva de animais domésticos em condições ruins e mudanças climáticas estão entre os principais fatores que aumentam o risco de pandemias no mundo todo.
Portanto, se quisermos prever ou controlar novas pandemias, precisamos primeiro entender que a culpa é do nosso estilo de vida contemporâneo. A culpa é da nossa falta de visão e da nossa resistência em mudar.
Insistimos no erro de usar os recursos naturais de forma irresponsável, como se eles fossem infinitos ou como se o mau uso deles não tivesse consequências. Por exemplo, com relação à propagação de doenças causadas pelo vírus Ebola, alguns estudos mostram que o desmatamento e a caça aumentam o risco. Isso reforça a ideia de que a conservação biológica não está separada da prevenção de doenças. O mesmo já foi demonstrado para os hantavírus e outros vírus.
Assim, precisamos assumir a nossa culpa e proteger os morcegos e outros animais que ainda não foram extintos, além de valorizar o trabalho dos virologistas.
Não será escondendo as descobertas dos virologistas ou fazendo campanhas de difamação contra eles na imprensa e nas redes sociais que vamos cuidar da saúde dos morcegos, dos outros animais, dos ecossistemas e de nós, humanos. Precisamos de visões integradas, inclusivas e transdisciplinares, como a iniciativa One Health, que almeja promover uma saúde global.
Iniciativas globais como essa, que transcendem fronteiras políticas e científicas, são essenciais para resolvermos problemas complexos que não cabem na gaveta de uma única disciplina. Dessa forma, poderemos recuperar a confiança que a sociedade perdeu em nós, cientistas. E, para que todos nos respeitem, precisamos primeiro respeitar a nós mesmos.
Clamamos por uma maior valorização da ciência, dos cientistas e dos morcegos.
Recomendações:
- Não mate morcegos ou quaisquer outros animais silvestres. Além de eles nos prestarem serviços ecossistêmicos cruciais, eles são protegidos pela Lei de Proteção à Fauna (Lei Nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967).
- Não tenha medo dos morcegos. Se você não incomodá-los em seus abrigos, eles raramente entrarão em contato com você. Contudo, se você estiver tendo algum problema concreto com eles, veja estas informações.
- Se você for quiropterologista, respeite o trabalho dos virologistas. Os problemas complexos que temos para resolver hoje, como esta pandemia, necessitam de cooperação transdisciplinar.
Se você quiser conhecer melhor os morcegos e suas relações com vírus e outros seres, leia os artigos a seguir:
- Morcegos são cruciais para a saúde dos ecossistemas em que vivem
- Morte de morcegos pode causar prejuízos econômicos e ambientais
- Morcegos vampiros: sangue, raiva e preconceito
- Morcegos e frutos: interação que gera florestas
- Economic Importance of Bats in Agriculture
- Morcegos
- Morcegos e a Covid-19: vilões ou vítimas?
- Covid-19: como o vírus saltou de morcegos para humanos
- Morcegos e vírus mortais
- O que fazer se eu estou tendo problemas com morcegos?
Você também pode conseguir informações valiosas em sites especializados em morcegos:
Para quem prefere ouvir as informações, há um episódio do podcast Alô, Ciência? sobre morcegos, Covid-19 e doenças emergentes:
Se você preferir, assista alguns vídeos sobre o maravilhoso mundo dos morcegos:
(Imagem destacada: foto de um sorridente morcego Molossus molossus, capturado no Parque Estadual do Rio Doce, MG. Ele faz parte das 70% de espécies de morcegos que se alimentam de insetos, controlando pragas agrícolas e urbanas. Foto por Marco Mello)
(Fontes usadas no infográfico: Muylaert (2019), IUCN, Bat Conservation International, Creazilla, Boyles et al. (2011), SM Mammal Diversity Database)
2 respostas para “Pandemia do novo coronavírus, Parte 4: em defesa de morcegos e virologistas”