Bem-vindos de volta à nossa série sobre as tarefas que parecem supersimples, #sóquenão.
Projetos são a constante na vida dos cientistas.
Sim, sério. Na ciência profissional, escrever projetos é que nem lavar louça: você mal termina uma leva e a próxima já começa a se acumular. Isso porque sem verba não se faz descobertas. A não ser que você tenha dado a sorte de nascer em berço de ouro, como o Darwin ou o Humboldt, e possa pagar as suas pesquisas do seu próprio bolso.
Contudo, talvez o seu bolso não seja tão fundo quanto o dessas figuras históricas. Nesse caso, você provavelmente deve recorrer à forma mais comum de pedir dinheiro na Academia: projetos submetidos a agências de fomento. Claro que também é possível conseguir verbas de outras fontes, como empresas e mecenas. Mas aqui vou focar no nosso ritual habitual.
Nesse nobre ritual de convencer as agências, uma parte normalmente negligenciada são os famigerados cronogramas, também conhecidos como timelines. Muitos costumam achar que eles são mera formalidade burocrática e, portanto, dão-lhes pouca atenção.
Ledo engano! Revisores experientes usam os cronogramas como um dos principais termômetros da chance de sucesso de um projeto. Isso porque uma noção concreta das milestones (aquelas marcas de quilometragem em estradas) ao longo da jornada demonstra que a pessoa sabe onde está se metendo.
Portanto, definir milestones é fundamental não só para vendermos nosso peixe, mas principalmente para fazermos um bom planejamento. Afinal de contas, trabalhamos com recursos finitos: verba, tempo e equipe. Logo, precisamos fazer o melhor uso possível desses recursos, senão nunca terminamos as coisas que começamos.
Eu aprendi isso com a minha saudosa mentora, a Profa. Kalko. Mais recentemente, li um post no blog do Prof. Heard, que propõe uma excelente forma de operacionalizar esses conceitos. Aqui apresento para vocês a síntese dos macetes que absorvi dessas duas fontes, dando a eles um tempero pessoal.
Ok, Marco, mas quais são os erros mais comuns?
Vou começar dando um exemplo negativo, baseado no que vejo nos projetos que avalio como assessor de diversas agências. Tomei como base um projeto hipotético de dois anos, a duração modal nas agências brasileiras.
Essa é a duração de 1 mestrado, 1/2 doutorado ou 1 postdoc típicos. Na verdade, independentemente do estágio em você estiver, recomendo fortemente dimensionar o seu projeto com cuidado. Se você estiver fazendo mestrado, planeje um projeto de no máximo 1 ano, ainda mais se ele envolver trabalho de campo. No caso do doutorado, 2 ou 3 anos no máximo.
Reserve o primeiro ano do seu mestrado ou doutorado para ler muito, cursar disciplinas, participar de congressos e workshops, e trocar figurinhas com orientadores, professores e colegas. Use esse treinamento inicial para lapidar a sua ideia com calma e, aí sim, por a mão na massa.
De qualquer forma, não faça um cronograma como este:
O que está errado com o Cronograma 1?
- As atividades apresentadas são vagas. Por exemplo, o trabalho de campo nunca funciona como um bloco monolítico, mas envolve uma série de tarefas, cada uma realizada ao seu tempo. Na verdade, qualquer atividade grande e complexa pode ser dividida em tarefas pequenas, muito melhores para gerenciar.
- Muito mais informativo do que listar atividades é indicar milestones. Ou seja, no exemplo anterior, a pessoa deveria focar o cronograma nas tarefas concretas que precisa concluir. E deveria dizer quando deve começar e terminar cada uma delas.
- Essas tarefas muitas vezes são confundidas com os tais “objetivos específicos”, uma mania aqui no Brasil. Não misture as coisas! Um projeto bem delineado deve ter apenas um único objetivo central. Essas metas menores, no fundo, devem ser formuladas e apresentadas como tarefas a serem cumpridas.
- Para um projeto de dois anos, dividir o tempo em semestres é vago demais. Seria melhor dividi-lo em bimestres ou meses para demonstrar que a pessoa sabe fazer estimativas acuradas de quanto tempo cada tarefa leva.
- Por que gastar um semestre inteiro com uma revisão bibliográfica? Ela deveria ser sido feita antes de começar o projeto, não durante a sua execução. Ao longo do projeto, o foco deve ser acompanhar a literatura nova, e não montar a base conceitual.
- Há tarefas demais encavaladas ao final do projeto, o que certamente levará ao caos na hora mais crítica, em que a pessoa deveria empacotar suas descobertas.
- Não dá para fazer uma análise definitiva dos dados, enquanto eles ainda estão sendo coletados. Contudo, dá para ir treinando e refinando os protocolos que a pessoa definiu. Por isso, preste atenção à simultaneidade entre coleta e análise. Explique em detalhes as tarefas específicas que precisa cumprir dentro de cada uma dessas atividades.
- Como a pessoa poderia fazer apresentações em congressos e submeter trabalhos a revistas, enquanto ainda está coletando e analisando os dados? Isso seria prematuro, a menos que ela tenha proposto um projeto modular. Veja mais sobre isso daqui a pouco.
- De quais congressos exatamente a pessoa planeja participar e por quê? Ir a eventos custa muito dinheiro, então essa atividade também precisa ser otimizada.
- A quais revistas exatamente a pessoa pretende submeter os manuscritos e por quê? Naturalmente, é comum os nossos trabalhos serem rejeitados algumas vezes antes de emplacarem. Entretanto, é interessante a pessoa demonstrar que conhece o perfil das revistas da área e sabe escolher um alvo primário, melhorando suas chances e otimizando seu esforço de publicação.
Saquei, Marco! Mostre-me agora um exemplo positivo!
Seu desejo é uma ordem! Veja como seria um cronograma bem feito. Estou supondo um projeto hipotético simples sobre dieta de morcegos que se alimentam de plantas. Um projeto focado em uma única missão.

O que funciona bem no Cronograma 2?
- Ele tem uma resolução temporal condizente com uma duração de 2 anos. Poderiam ser meses, ao invés de bimestres. Ou até mesmo trimestres ou quinzenas, dependendo da natureza das tarefas envolvidas. Veja o que faz sentido no seu caso.
- As atividades de campo e laboratório são divididas em tarefas concretas e sequenciais, que podem ser usadas como milestones para avaliar o progresso da aventura a cada etapa.
- Todas essas milestones devem estar devidamente referenciadas e detalhadamente explicadas na seção dos métodos. Você também pode explicar alguns pontos específicos incluindo notas no cronograma. Por exemplo, usando numerais sobrescritos 1, que nem nas notas de rodapé.
- O trabalho de campo proposto não é contínuo, mas intercalado. Isso dá fôlego para processar as amostras com calma. Assim, a pessoa demonstra saber dosar o esforço necessário para cada tipo de tarefa.
- A pessoa demonstra ter noção da dificuldade envolvida em identificar amostras biológicas, reservando um bom tempo para as tarefas relacionadas. Ela também demonstra saber que primeiro é preciso identificar as plantas em campo, assim como suas sementes e pólen, para só depois poder identificar os itens encontrados nas fezes dos morcegos. Nos métodos também é preciso explicar quem serão os taxonomistas que ajudarão na identificação do material biológico.
- Ao longo da coleta em campo e processamento em laboratório, os dados serão computados e curados. Nos métodos, é preciso explicar como exatamente essas tarefas serão feitas, seguindo protocolos internacionais de data science.
- As análises estatísticas só serão feitas depois que todos os dados estiverem coletados. Em um projeto bem pensado, na hora de operacionalizar as ideias, a pessoa já deve definir claramente quais análises serão aplicadas lá no final. Naturalmente, treino e refinamento de protocolos devem ser feitos no percurso.
- Outra tarefa relacionada aos dados que pode ser feita na fase inicial é uma análise piloto, a fim de estimar o tamanho amostral necessário. Esta tarefa poderia vir logo antes da milestone 10, no bimestre 1/3, por exemplo.
- A redação costuma ser um momento de grande estresse para a maioria dos aspiras. Portanto, invista em aprender essa habilidade o quanto antes. De qualquer forma, a redação não precisa ser iniciada do zero no bimestre indicado. Ela pode ser feita aos poucos. O momento marcado no cronograma representa apenas quando será dado foco integral a essa tarefa.
- A pessoa demonstra ter consciência sobre open science, incluindo no fluxo de trabalho o compartilhamento de códigos, dados e preprint.
- A pessoa demostra saber que um trabalho só deve ser apresentado em um evento científico, no mínimo depois que já estiver pronto em versão preprint. E sabe também que tem a opção de aproveitar o feedback recebido no evento para melhorar a versão final do manuscrito que vai submeter a uma revista. E sabe para qual revista deseja submeter suas descobertas.
Mas, Marco, e se fosse um projeto mais complexo?
Bom, se você tiver em mente um projeto mais complexo, por exemplo de doutorado ou postdoc, sugiro fortemente que o planeje de maneira modular.
Quero dizer com isso que o seu projeto não deve apostar todas as fichas em uma única missão. Proponha investigar o problema de interesse a partir de duas ou mais linhas de evidências. Poderia ser, por exemplo, um projeto que envolvesse ecologia, genética e morfologia. Essas três frentes ajudariam a desvendar algum tipo de interação entre uma espécie de morcego e as plantas das quais ela se alimenta.
Uma abordagem modular te dá diversas vantagens. Primeira, você pode chegar a uma resposta mais conclusiva para a grande pergunta de interesse. Segunda, caso uma parte do projeto naufrague, seja por qual razão for, você pode salvar as outras. Terceira, você pode gerar mais produtos principais e adicionais (artigos, livros, códigos, protocolos, patentes, matérias etc.).
Bom, veja como ficaria então o cronograma de um projeto hipotético modular pensado para 3 anos, a duração típica de um edital universal do CNPq. Imagine que fosse um projeto sobre interações entre morcegos e plantas (caraca, o Marco é obcecado por isso! rs).
Primeiro, a proponente hipotética precisará compilar um banco de dados a partir de várias fontes. Depois, precisará desenvolver um novo método para testar a hipótese de trabalho, supondo que os métodos disponíveis não atendam as suas necessidades. Por fim, investigará a hipótese em si.
Poderia ser algo mais ou menos assim:
As mesmas ideias gerais que eu comentei sobre o Cronograma 2 valem também para o Cronograma 3. As diferenças seriam:
- Esse outro projeto é modular, ou seja, composto por 3 capítulos que conversam entre si. Se tudo correr bem, um ajudará a construir o outro. Mas, se algum deles não der certo, é possível salvar os demais.
- A pessoa demonstra que vai trabalhar em um capítulo de cada vez, diminuindo a chance de se enrolar. E deixa claro em que sequência cumprirá cada tarefa.
- O tempo total proposto dá folga para que haja alguma sobreposição de capítulos, caso ocorram imprevistos e atrasos. Por exemplo, a parte final da publicação de cada artigo sempre demora, então é bom levar esse tipo de coisa em conta.
Moral da história
Capriche! Nas agências mais competitivas, um cronograma mal feito pode arruinar todo o seu esforço. Além disso, elabore um cronograma baseado em milestones concretas, que possam servir como termômetro para avaliar a chance de sucesso do seu projeto, assim como o progresso dele depois de iniciado.
(Fonte da imagem destacada: “A Persistência da Memória”, Salvador Dali, 1931)
Muchas gracias por estos posts. Son un poco la ayuda sobrenatural que necesito para ir superando mis crisis en el camino de la ciencia.
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De nada, Guadalupe! Fico muito feliz em saber que podemos te ajudar de alguma forma.
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Marco, estou começando a achar que você gosta de morcegos e de como eles interagem com plantas… Mas deve ser só impressão minha! 😀
Cara, ótimo post, obrigado por escrever isso! Eu ainda tenho dificuldade em escrever projetos; mas na verdade eu nunca escrevi muitos, porque as pesquisas que costumo fazer não requerem tanto financiamento. Bom de medir plantinhas é que um paquímetro basta, rsrs. Na verdade tenho escrito mais agora, pra conseguir bolsas de IC pra pessoinhas.
Agora, o que você de incluirmos no cronograma também o que você falou sobre delineamento das análises estatísticas, pré-escrita do texto etc? No seu primeiro exemplo, minha crítica talvez seria que é pouco tempo para as análises e para a escrita. Aí eu sugeriria incluir explicitamente estudo e planejamento das análises e também escrita de diferentes partes do trabalho (por exemplo, a introdução e os métodos podem ser escritos antes dos dados terem sido coletados. Eu gosto de começar escrevendo pela introdução porque pra mim a introdução depende dos objetivos mas não depende das conclusões; talvez eu seja minoria nesse pensamento, rs). E pensando em um projeto de mestrado, eu acho que formação da pessoa também é um aspecto importante a ser considerado, então incluir explicitamente tempo pra estudo e planejamento das análises pra mim é algo interessante.
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Obrigado, Pavel! Sim, morcegos são tudo de bom! rs
Pois é, não tem jeito. Depois que viramos professores, não tem como escaparmos do famoso grant writing. Por mais barata que seja a linha de pesquisa de um lab, sempre há alguma infraestutura a ser montada e cuidada. Isso, fora bolsas de alunos, software, viagens para congressos etc.
Sim, você tem razão. Esses detalhes todos podem e devem ser ajustados à sua realidade. Os exemplos que dei no post são só exemplos, para os meus conselhos não ficarem abstratos demais. Dá para incluir, excluir e dividir tarefas, além de sintonizar a duração delas.
Com relação aos projetos que mestrandos e doutorandos escrevem para conseguir bolsas vip (i.e., que não sejam as default do PPG), sim, também recomendo incluir tarefas formativas. Dá para incluir até as disciplinas que a pessoa pretende cursar dentro e fora do PPG. Além, é claro, do tempo que será investido no delineamento do projeto. Para os meus alunos, recomendo sempre reservarem o primeiro ano para um estudo intensivo, full throttle. Na prática, isso quer dizer eliminar todos os créditos exigidos, aprender as habilidades novas necessárias para o projeto e a perspectiva de carreira da pessoa, e delinear o projeto com calma.
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