A pressão pela volta à normalidade está cada vez mais forte. É melhor pararmos e respirarmos, porque a pressão é uma péssima conselheira.
A forma como o Brasil está lidando com a pandemia do novo coronavírus é simplesmente lamentável. As pessoas politizaram uma doença! Diferentes esferas dos governos brigam entre si, fazendo “coronapopulismo”. Medidas corretas são seguidas por medidas equivocadas.
Como se não bastassem as brigas entre os políticos, as redes sociais estão piorando ainda mais as coisas. Ondas de informação, desinformação e fake news se misturam, formando um tsunami e afogando a população, que fica sem saber no que ou em quem acreditar. Os grupos do “zap” têm trazido tanta notícia falsa que é de chorar.
Esse tsunami só não causa ainda mais estragos, porque profissionais e voluntários de diferentes áreas estão dando suas vidas para tentar controlar a pandemia em frentes de batalha presenciais e online. Não está fácil para ninguém.
Isso não é uma pandemia, mas sim um pandemônio.
Esse pandemônio envolve também a questão da volta às aulas presenciais. Na verdade, é surreal estarmos sequer cogitando essa possibilidade em meio a uma segunda onda de contágio pior do que a primeira.
Outros países que também estão enfrentando segundas ondas voltaram ao lockdown no sentido estrito, algo que nós sequer chegamos a fazer por estas bandas. Pois é, se tivéssemos feito nosso dever de casa, lá em março do ano passado, não estaríamos vivendo nessa “Quarentena de Schrödinger” infinita.
Nós, por outro lado, estamos achando uma boa ideia voltar a aglomerar alunos, professores e funcionários antes que eles sejam vacinados. O timing não poderia ser pior.
Vale lembrar que os países bem-sucedidos no combate à Covid-19, que fizeram um retorno temporário às aulas presenciais, tomaram essa decisão com base em evidências científicas. Neles, a volta se deu em momentos quando a curva epidemiológica estava em baixa. Ou seja, com a transmissão comunitária reduzida a zero ou perto disso, após períodos de lockdown e quarentena rigorosos. E, acima de tudo, adotando-se protocolos de monitoramento. Mesmo assim, o resultado foi ruim em muitos lugares.
Considerando a nossa realidade socioeconômica e a situação atual da pandemia no Brasil, não faz sentido voltarmos às aulas presenciais agora. Aqui vou apresentar cinco razões para não seguirmos por esse caminho absurdo, mas há várias outras.
1. Estamos em uma “pororoca de corona”
“Pororoca” é uma analogia perfeita, que define o encontro de uma primeira onda eterna com uma segunda onda colossal. Essa catástrofe foi prevista por cientistas lá no meio do segundo semestre de 2020 e se confirmou de forma assustadora. Basta olhar as curvas de casos e óbitos para sentir taquicardia.


Fora que esses números estão enormemente subestimados. Estamos testando os casos suspeitos muito menos do que deveríamos, por falta de insumos e de liderança. Infelizmente, há milhares de pessoas morrendo registradas como vítimas de SARS, AVC e infarto, que, na verdade, estão sendo ceifadas pela Covid-19. Sim, essa doença é primariamente respiratória, mas tem desdobramentos sistêmicos em vários outros tecidos do nosso corpo.
Fora os desdobramentos e as sequelas, que aos poucos vamos entendendo melhor, estão aparecendo novas variantes preocupantes do novo coronavírus (SARS-Cov-2) aqui e no exterior. Essas novas variantes são ainda mais contagiosas do que a versão original lá de novembro de 2019. Esse contágio maior, somado ao relaxamento das medidas preventivas em muitos países, está gerando segundas ondas colossais. Mesmo em lugares que começaram bem no combate à pandemia, como a Alemanha.
Não faz sentido voltarmos às aulas presenciais em um momento em que deveríamos entrar em lockdown e investir em tornar universal o acesso ao ensino remoto emergencial.
2. Agora há uma luz no fim do túnel
A boa notícia é que o combate à pandemia agora pode ser muito mais eficiente, porque conseguimos desenvolver várias vacinas. Elas têm diferentes tecnologias, eficácias, preços e logísticas. Tem para todo gosto e, sim, elas são seguras.
Só que não vamos vencer a pandemia só com vacinas, ainda mais com o movimento antivaxxer e outras teorias da conspiração em alta. Por isso, é fundamental que intensifiquemos as medidas preventivas, como máscara, distanciamento físico, higiene redobrada, testagem em massa e rastreamento de casos. Quem puder, deve permanecer trancado em casa. Quem não puder, deve tomar todos os cuidados sanitários na rua.
A propósito, vale lembrar também que não existe tratamento precoce contra a Covid-19! Então não corra riscos à toa, indo na onda de políticos populistas.
Precisamos nos manter firmes, pois é só uma questão de tempo até um número suficiente de pessoas serem vacinadas. Deveríamos, no mínimo, esperar professores, funcionários e alunos serem vacinados. Talvez consigamos isso até 2022, se não sabotarmos a nós mesmos.
E não se engane: a imunidade de rebanho é um conceito que só existe no contexto de vacinas. Se deixarmos a pandemia correr solta, o que vai acontecer é seleção natural. Ou seja, as pessoas vulneráveis morrerão ou ficarão com sequelas.
Foi o que aconteceu na Pandemia de Gripe de 1918. Pois é, a gripe não ficou mais fraca com o tempo. Na verdade, hoje a consideramos uma doença relativamente tranquila, porque somos todos descendentes das pessoas resistentes, que sobreviveram a ela. Isso, fora mais de 100 anos de pesquisas científicas sobre a gripe, melhorando tanto a prevenção quanto o tratamento, e culminando com a vacina. Quem você acha que é aceitável deixarmos morrer agora nesta nova pandemia? Sua mãe? Seu filho? Sua professora?
Não faz sentido voltarmos às aulas presenciais justo agora que finalmente temos vacinas à disposição.
3. O sofrimento de todos é real, mas a morte não seria uma escolha melhor
As dores pelas quais todos estão passando em função da pandemia são reais. O sofrimento psicológico que aflige alunos, pais e professores durante o ensino remoto emergencial também é real. Estamos todos cansados, tristes e aflitos.
As crianças, adolescentes e jovens estão tendo perdas educacionais sérias por causa da mudança brusca para o ensino remoto emergencial? Sim!
Desigualdades sociais estão sendo aprofundadas, já que a falta de aulas presenciais afeta muito mais os alunos pobres, da quebrada? Sim!
Muitos pais de classe média e classe alta estão surtando, porque está difícil conciliar o trabalho em home office com cuidar dos filhos e da casa? Sim!
Muitas escolas particulares estão tendo sérios prejuízos ou até faliram, devido à evasão ou à inadimplência? Sim!
Muitas escolas e universidades, tanto públicas quanto particulares, estão sofrendo enorme pressão do governo e dos pais pela volta às aulas presenciais? Sim!
Não faz sentido voltarmos às aulas presenciais, apesar de todos esses problemas e de vários outros causados pela pandemia. Seria escolher a morte. Tomem consciência da escolha que estão fazendo, pois ninguém está livre de risco. Pensem não apenas nas suas famílias, mas também na coletividade.
4. Crianças e jovens são importantes na cadeia de transmissão do novo coronavírus
Fora o risco geral pelo qual estamos passando agora na segunda onda, há ainda esse risco mais específico.
Já foram publicados mais de 200 mil estudos científicos sobre a pandemia. Muitos deles têm focado na questão da volta às aulas presenciais. Ao que vários estudos internacionais indicam, crianças e jovens, o público principal das escolas e universidades, são nós importantes na rede de contágio da doença.
OK, ainda há certa controvérsia quanto à capacidade de transmissão das crianças, devido a limitações metodológicas dos estudos observacionais feitos até o momento. Mas, na melhor das hipóteses, crianças e jovens têm o mesmo risco de se infectarem e transmitirem o novo coronavírus que os adultos.
Mas por que então deveríamos nos preocupar com o papel das crianças e jovens na transmissão do novo coronavírus, já que o risco de morte e sequelas é maior entre os idosos?
- Crianças e jovens permanecem em sua maioria assintomáticos, sem desenvolver a Covid-19, quando pegam o novo coronavírus. Assim, eles passam por debaixo do radar, mesmo em países que estão monitorando o contágio a sério, através da testagem em massa e rastreamento de casos.
- Crianças e jovens circulam pela cidade mais do que os idosos. Logo, os alunos acabam conectando bairros e pessoas da cidade. Eles levam o coronavírus para casa e contaminam seus parentes idosos e com comorbidades, que têm maior probabilidade de desenvolverem as formas graves da doença. Os professores e funcionários das escolas e universidades obviamente também ficam em risco.
- Crianças e jovens têm menos cuidado com a higiene e com a prevenção de riscos. Não à toa, uma das grandes preocupações de pais e educadores é ensinar seus filhos e alunos a respeitarem regras de segurança simples. Quem é pai ou professor sabe bem como é isso. Já imaginou a prevenção da Covid-19 em uma turma lotada, com 20 crianças, sem ventilação adequada, higienização constante, monitoramento de sintomas ou equipamentos de proteção coletiva e individual? Seria o horror!
- Crianças e jovens, em sua maioria, vão para a aula usando transporte público, um dos principais focos de contágio. Portanto, mesmo que as salas de aula passassem por uma profunda reforma de segurança sanitária, só o ato de ir à aula já implicaria um enorme risco.
- Por fim, essa suposta reforma sanitária das salas é algo completamente fora da realidade. Só quem nunca pisou em um laboratório de virologia acha viável dar a uma sala de aula um bom nível de segurança sanitária no contexto de uma pandemia respiratória. E estamos falando de muitas escolas e universidades, especialmente as públicas, que já estavam com sua infraestrutura sucateada.
Logo, a volta à sala de aula só deveria se dar, lenta e progressivamente, depois que alunos, professores e funcionários de escolas e universidades fossem vacinados. E ela deveria ser feita respeitando-se as evidências científicas e após um diálogo aberto com vários setores da sociedade. A ordem correta de acontecimentos deveria ser essa, em uma gestão pública que respeitasse de verdade o trabalho da ciência e valorizasse a vida acima de tudo.
Não faz sentido voltarmos às aulas presenciais de forma arbitrária, sem tomarmos essas precauções essenciais.
5. Os professores não estão curtindo “férias”
Vale tocar nesse ponto, no contexto da volta às aulas presenciais. Nos últimos anos, virou esporte, no Brasil e em outros países, falar mal de professores, cientistas, intelectuais, especialistas e servidores públicos.
Muita gente, nas redes sociais, está chamando de vagabundos os professores de escolas e universidades. Como se nós estivéssemos de braços cruzados todos esses meses, só esperando a pandemia passar, curtindo nosso salário numa boa.
A realidade não poderia ser mais diferente. Aqui vou falar do ensino superior, a minha praia. Mas sei que os professores dos ensinos infantil, fundamental, médio, técnico, especial e EJA estão sofrendo igualmente.
Primeiro, professores universitários, em sua maioria, não recebem treinamento para o ensino remoto, muito menos para EAD ou MOOC. Os poucos que realmente entendem de ensino remoto, como por exemplo os que participam da Univesp, buscaram treinamento por iniciativa própria. Mesmo assim, quando estourou a pandemia, várias universidades migraram rapidamente para o ensino remoto emergencial, a fim de diminuirem o prejuízo para os alunos, especialmente os formandos. Ainda estamos nos adaptando e lutando para melhorar os nossos cursos e a nossa infraestrutura. Aulas remotas dão muito mais trabalho do que aulas presenciais, ainda mais quando temos que aprender o formato do dia para a noite, então a nossa carga de trabalho cresceu exponencialmente.
Segundo, professores universitários não atuam apenas no ensino. A nossa carreira tem cinco pilares: ensino, pesquisa, orientação, extensão e gestão. Logo, além de estarmos trabalhando muito mais do que o habitual para convertermos os nossos cursos para formatos remotos, continuamos desenvolvendo os nossos projetos científicos, atuando na mentoria de novos cientistas, prestando serviços diretos à sociedade e fazendo a universidade e outras instituições funcionarem através de cargos administrativos. Por falar em gestão, o número de reuniões burocráticas explodiu por causa da pandemia, tomando um tempo enorme.
Terceiro, professores universitários estão lutando na linha de frente da pandemia. Estamos desenvolvendo vacinas, remédios, insumos, equipamentos e tratamentos, dentre várias outras inovações. Há professores atendendo pacientes de Covid-19 diretamente nos hospitais e clínicas universitárias. E há muitos outros professores lutando também na retaguarda, por exemplo, participando de comitês de gerenciamento da pandemia no governo ou no terceiro setor, organizando bancos de dados e observatórios, ou fazendo divulgação científica na imprensa e nas redes sociais.
Nenhum de nós parou de trabalhar. Na verdade, estamos trabalhando muito mais do que o normal, sob enorme pressão social, em meio a uma campanha de destruição das nossas reputações. Muitos de nós estão em franco burnout.
Não faz sentido voltarmos às aulas presenciais com base no argumento de que os professores precisam fazer jus aos seus salários. Não paramos um dia sequer e estamos sobrecarregados.
Moral da história
Temos boas razões para comemorar, porque a ciência está fazendo a parte dela no combate à pandemia. Vacinas foram desenvolvidas em tempo recorde. Protocolos de prevenção e tratamento também têm sido aperfeiçoados e divulgados conforme aprendemos mais no calor da batalha.
Só que ainda não é hora de voltarmos à vida normal. Portanto, aceitem a realidade por pelo menos mais um ano, já que a vacinação será lenta e confusa no Brasil. Finalmente há uma luz no fim do túnel, então por que desistir justo agora?
Voltar às aulas presenciais neste momento, mais do que sem sentido, seria genocídio.
Adendo, 09/03/21:
Leia uma matéria sobre uma nota técnica publicada agora em março, reafirmando o que eu e muitas outras pessoas já estávamos alertando lá em janeiro.
Adendo, 07/05/21:
Mais uma nota técnica dizendo como deveria ser uma volta segura às aulas presenciais.

Adendo, 18/05/21:
Vejam o resultado dessa tragédia anunciada no boletim do DIEESE.
Adendo, 13/10/21:
Segundo a matéria abaixo, o governo do estado de SP acaba de decretar a volta às aulas presenciais, contrariando todas as evidências científicas disponíveis. Nossos governantes continuam até hoje insistindo em medidas inócuas, como a medição da temperatura corporal, ou medidas de baixa eficiência, como a higienização das mãos com álcool em gel. Surrealmente, abandonaram por completo medidas de alta efetividade comprovada, como o distanciamento físico. Por incrível que pareça, ainda ignoram por completo as medidas mais importantes, como uso de máscaras do tipo PFF2, ventilação reforçada nas salas de aula, testagem em massa de alunos, funcionários e professores, e rastreamento de contágio. Como se não bastasse, agem como se as vacinas protegessem as pessoas antes de serem tomadas por completo e não depois. Por fim, ignoram que, mesmo que a vacinação de adultos esteja avançada no estado, a vacinação de adolescentes ainda está pela metade e a de crianças sequer começou. Não é à toa que a pandemia virou pandemônio no Brasil. No fundo, a maioria dos pais não aguenta mais cuidar dos seus próprios filhos em casa. Assim, o governo, ao invés de tomar as medidas recomendadas pela ciência para controlar de verdade a pandemia, dá às pessoas o que elas pedem e não o que elas precisam. O mais triste é que já poderíamos, sim, ter retornado às aulas presenciais em segurança. Mas todas as recomendações feitas por cientistas e organizações acadêmicas e sanitárias desde o ano passado foram sumariamente ignoradas.
Texto excelente! Direto ao ponto das questões fundamentais, e em linguagem compreensível para o amplo público! Parabéns e obrigada pelo serviço prestado à sociedade!
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Muito obrigado! Fico feliz em poder ajudar de alguma forma.
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