“Ouçam os cientistas!” – Mais quais?

Sabe quando pedimos às pessoas leigas: “ouçam os cientistas!”? Essa parece uma recomendação simples, óbvia e trivial para acadêmicos. Mas quais cientistas elas deveriam ouvir, especialmente na Era do Pós-Verdade?

Sente e pegue um chá, porque esta é mais um reflexão longa e densa aqui no blog. Vou cutucar muitas feridas, algumas delas ainda abertas, então pule este texto se você não estiver se sentindo bem. Acho que esta cutucada é necessária no momento que vivemos, de modo que paremos de insistir nos mesmos erros.

O problema

Não está fácil ser cientista, professor ou servidor público, especialmente no Brasil.

Nos últimos anos, virou moda sermos atacados por toda parte. Nossas reputações são destruídas na internet, sofremos assédio jurídico pessoal, nossas universidades sofrem assédio parlamentar, nossas verbas vem sendo reduzidas drasticamente e nossos aspiras têm péssimas perspectivas de carreira. É como se, de repente, a sociedade tivesse decidido que os intelectuais são culpados pela crise que assola o país desde 2013. Portanto, precisaríamos ser extintos.

Esse desejo de extinção tem raízes que remontam aos anos 1950. Foi quando começaram os ataques mais sistemáticos à ciência nos EUA e outros países centrais na geopolítica. Só que, na verdade, esse conflito entre governos, sociedade e academia é ainda mais antigo e cíclico.

O maior problema, na edição atual desse conflito, é vermos colegas cientistas jogando no time contrário.

Mea culpa

Sim, hoje existem cientistas alinhados com o discurso anticiência. Portanto, precisamos refletir se não teríamos uma parcela de culpa por essa deterioração da nossa relação com a sociedade. Acredito piamente na máxima:

“Antes de arrumar o mundo, arrume o seu quarto”

Charles Sykes

Eu e outros colegas já vínhamos fazendo alertas nesse sentido há anos, criticando cientistas que misturam política e ciência de maneira tóxica na sua comunicação de massa. Hoje esse problema tomou proporções épicas.

Tudo bem, por um lado, todo cientista é também um cidadão e tem direito a ter uma opinião política pessoal. Só que, por outro lado, quando um cientista fala em público, precisa tomar muito cuidado para separar claramente opinião pessoal de parecer técnico. Senão, mesmo quando o cientista fala sobre a sua especialidade e tenta ajudar a resolver um problema de interesse coletivo, ninguém o respeita como autoridade independente.

Vale lembrar também que todo servidor público, quando dá entrevistas à imprensa ou posta informações nas redes sociais, ainda que informalmente está representando sua universidade ou instituto. E, acima deles, o próprio conceito de Estado. Portanto, ao se comunicar com a sociedade, o cientista precisa manter não apenas o rigor, mas também a compostura e principalmente a independência política.

Infelizmente, essa mistura tóxica que muitos colegas fazem entre os campos pessoal, profissional, científico e político, especialmente nas redes sociais, gera desconfiança generalizada na sociedade. Como saber se aquele professor renomado, ao falar sobre a prevenção da Covid-19, está realmente divulgando informações baseadas em evidências ou apenas fazendo proselitismo ideológico? Como saber se aquela outra pesquisadora brilhante, ao criticar o discurso de um senador, não está apenas promovendo a agenda de outro político de estimação?

O problema é mais complexo do que supomos

Nós, cientistas profissionais, conseguimos separar o joio do trigo nesses casos de proselitismo ideológico ou político. Mas essa separação está longe de ser trivial para quem não faz ciência profissionalmente ou sequer tem uma boa formação científica. Não podemos nos esquecer de que a esmagadora maioria da população, em qualquer país, não tem a menor noção de como a ciência funciona.

Esse problema é grave até mesmo nos países centrais, onde a educação de base é muito melhor do que a nossa. Não se esqueça de que foi nesses países centrais que nasceram algumas das teorias da conspiração que jogam o mundo no caos, como o movimento antivaxxer.

Acreditar que vacinas fazem mal à saúde ou que a Terra é plana não é algo de se espantar, considerando uma população iletrada no método científico. Estamos falando de uma população que não entende como o conhecimento científico é produzido ou como ele se diferencia de outras formas de conhecimento. Logo, para essa população, acreditar em ciência, pseudociência ou teorias da conspiração parece uma simples questão de gosto.

Como então podemos pedir que as pessoas confiem em nós, cientistas, e não em ideólogos ou charlatães? Pois é, ainda que não nos demos conta disso, pedimos confiança cega à sociedade. Sem entender direito o que é a ciência, uma pessoa leiga não tem como diferenciar o parecer técnico dado por uma professora universitária da opinião política emitida por um deputado em uma CPI, por exemplo.

Sem que as pessoas leigas sejam capazes de diferenciar ciência de pseudociência ou teoria da conspiração, ou sequer consigam filtrar fontes de informação científica de maneira eficiente, como podemos pedir que elas ouçam os cientistas?

O maior dilema é: quais cientistas as pessoas deveriam ouvir?

Quem é cientista de verdade?

As pessoas deveriam ouvir os cientistas que defendem as vacinas ou os que defendem o suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19?

Sim, há cientistas “de verdade” em todos os lados dessa briga surreal. Sim, infelizmente, há até professores de algumas das melhores universidades do mundo defendendo visões que não têm base alguma em evidências, de falsos remédios a negacionismo climático.

Mesmo que os negacionistas sejam apenas uma minoria barulhenta, é uma falácia de retórica dizer que as pessoas devem acreditar sempre na maioria ou no consenso. Nunca se esqueça de que monstruosidades pseudocientíficas, como a superioridade de algumas raças humanas em relação a outras, um dia já pareceram ser consenso acadêmico em alguns países. Em um mundo ideal com boa educação científica para todos, as pessoas deveriam ser capazes de julgar por si próprias quando uma interpretação é baseada em evidências ou não. Em um mundo mais perto do real, os posicionamentos oficiais das instituições acadêmicas deveriam servir como pontos de referência mais confiáveis do que as opiniões dos indivíduos, estejam eles junto com a maioria ou a minoria.

O pior é que dados, interpretações, opiniões e mentiras ficam todos misturados no caos das redes sociais. Isso porque todos, cientistas ou não, podem divulgar o que quiserem nas redes sociais, que se tornam cada vez mais populares como fontes de informação. Nesse ecossistema “livre”, que, na verdade, é manipulado por megacorporações, não há editores ou revisores. Ou seja, não há peer review e, portanto, não há o rigoroso controle de qualidade acadêmico. A “qualidade” é medida puramente na forma de atenção (views, likes, shares e comments), o que torna esses ambientes extremamente tóxicos, criando ilusões de relevância e fama.

Com todo esse incentivo ao ego, não surpreende, portanto, vermos um caos de desinformação nas redes sociais, mesmo entre cientistas. Consequentemente, ainda que uma pessoa leiga procure se informar nas bolhas acadêmicas e não nas bolhas políticas, ela tem uma grande chance de entrar em contato com informação de má qualidade ou pura ideologia ou egocentrismo. É preciso encarar a dura realidade: há diferentes bolhas acadêmicas, que têm visões conflitantes entre si, e elas são tão problemáticas quanto as outras bolhas.

Não dá para estourar a nossa bolha, apelando para a “falácia do escocês de verdade“. Refiro-me às pessoas que dizem “Fulano não é cientista de verdade, porque defende a opinião X”. Oras, se Fulano é professor titular de uma universidade pública conceituada, tem um Lattes quilométrico, publica em revistas top, seus papers são amplamente citados pelos pares, recebe patrocínio das melhores agências de fomento e orientou outros cientistas famosos, então, socialmente, é um cientista por todos os critérios imagináveis.

Pode não ser um cientista ético. Ou pode ser um cientista que um dia já foi ético, mas aos poucos sucumbiu ao ressentimento e passou para o lado sombrio da Força. Como alguns cientistas renomados que, entre os séculos XVIII e XX, deram suporte acadêmico e político a ideias monstruosas, como o racismo científico, o darwinismo social e a eugenia.

O ressentimento é a chave para que possamos fazer um mea culpa acadêmico.

O ressentimento é a chave

O ressentimento é uma das motivações mais poderosas que existem. Ele pode levar cientistas renomados a jogarem suas reputações acadêmicas no lixo em nome do falso acolhimento oferecido por uma ideologia política. Mesmo que essa ideologia promova a morte de milhares ou milhões de pessoas.

Pois é, cientistas não são imunes a ideologias, até mesmo porque não são imunes ao ressentimento. É preciso entender que não há apenas o ressentimento da sociedade em relação à academia. Esse tipo de ressentimento externo envolve fatores mais abertamente discutidos nos últimos anos. Por exemplo, arrogância acadêmica, imposição ideológica, cultura do cancelamento, elitismo, racismo e uma falsa meritocracia no sistema acadêmico como um todo. Ou simplesmente ressentimento de pessoas bem-nascidas e privilegiadas, que, mesmo assim, não conseguiram passar pelas cruéis peneiras acadêmicas, ficando fora de boas universidades ou tendo que desistir de uma carreira na ciência.

Existe ainda um ressentimento interno na academia. Estou falando de cientistas com carreiras medíocres, que, mesmo tendo bons salários vitalícios garantidos, se ressentem da comunidade pela falta de atenção. Ou de cientistas narcisistas que se destacam, mas ainda assim nunca acham suficiente a atenção que recebem e, portanto, também se ressentem. Ou de cientistas com uma visão política mais à direita ou mesmo ao centro, que tiveram suas vozes reprimidas dentro da maioria das universidades públicas por décadas após a última redemocratização. Há vários outros exemplos.

Não, ilusões ou hipocrisia à parte, a universidade não é um ambiente que tolera a diversidade de opiniões e tampouco é um cantinho acolhedor. Experimente expressar opiniões que contrariam o mainstream político da sua instituição, esteja ela mais à esquerda ou à direita, e entenderá o que estou falando. Experimente sair do armário, assumindo-se como uma pessoa que professa uma espiritualidade ou religião, e entenderá o que estou falando.

A falta de acolhimento gera uma multidão de pessoas ressentidas dentro e fora da academia. Os ressentidos de vários tribos se juntaram ao movimento reacionário contemporâneo, que vai muito além do Brasil e além até mesmo do fascismo, tendo raízes no Tradicionalismo do século XIX. Isso porque ele, como todo movimento totalitário, ofereceu a ilusão de acolhimento a todos que se sentiam à margem do “sistema”.

Autoras clássicas, como a Hannah Arendt, já apontavam que boa parte do totalitarismo nasce da emergência ao poder do que ela chamava, nas palavras dela, de “ralé”. Ou seja, um grupo social heterogêneo, que mistura pessoas pobres e ricas, jovens e velhas, unidas entre si por um ressentimento profundo contra o sistema. Essa ralé é manipulada por alguma figura carismática, que alimenta seu ressentimento e transforma classes e indivíduos em uma massa amorfa. Isso acontece de forma cíclica na história e, a cada rodada, quando a ralé toma o poder, escolhe um novo bode expiatório para as suas mazelas.

Vivendo uma distopia

O bode expiatório da rodada atual de ascensão do totalitarismo são os intelectuais. Na visão dos tradicionalistas contemporâneos, não devemos mais acreditar em “especialistas”, mas em pessoas que defendem supostos “valores tradicionais” ligados a um passado mítico e glorioso.

O resultado dessa descrença nos especialistas é um país falido e polarizado, sem um plano centralizado e coerente de combate à pandemia de Covid-19, com centenas de milhares de pessoas morrendo, cientistas, professores e servidores difamados como se fossem inimigos públicos, universidades e sistema de saúde sucateados, educação básica abandonada, indústria nacional desmontada e órgãos ambientais paralisados.

Hoje somos uma sociedade que confia mais em mensagens de celular do que em artigos científicos. Uma sociedade que deixou de acreditar em suas instituições e que, portanto, está com sua democracia em perigo.

Não chegamos aqui ontem. Aos poucos, fomos deixando de acreditar nas nossas instituições por culpa de uma sequência de políticos populistas, que ao longo de décadas criaram uma enorme confusão entre suas figuras pessoais e os cargos públicos que ocupam. Alguns deles até mesmo se apropriaram dos símbolos nacionais como se fossem seus símbolos particulares. Outros se apropriaram de símbolos claramente ligados a movimentos totalitários do século XX. Depois de enfraquecidas as instituições, fica fácil os totalitários subirem ao poder vendendo a ilusão de retorno ao tal passado mítico e glorioso.

Esse totalitarismo, que é o resultado de um longo processo de enfraquecimento das instituições, acaba sendo alimentado até mesmo por alguns de nós, cientistas. Quando colegas misturam suas crenças políticas ou ideológicas com sua comunicação sobre ciência, estão agindo igual aos populistas e contribuindo para agravar a crise de confiança na ciência como instituição.

Não seria hora de nós, cientistas, finalmente entendermos a nossa responsabilidade na comunicação de massa, ainda mais em tempos de egocentrismo, hedonismo e manipulação de emoções pelas redes sociais? Não seria hora de a academia finalmente se tornar uma força política independente, atuando como um dos faróis da sociedade? Não seria hora de a universidade realmente se abrir ao povo, não apenas da boca para fora, tornando-se mais inclusiva e acolhedora?

A ciência, representada principalmente pela academia, é uma das cinco grandes culturas humanas. Cada uma dessas culturas tem sua importância para a sobrevivência e o desenvolvimento da nossa espécie, desempenhando um papel que não cabe às outras. O papel específico da ciência sempre foi servir como referência sobre conhecimento baseado em evidências. Quando as pessoas não podem confiar nos cientistas como fontes independentes desse tipo de conhecimento, esse “vácuo de poder” fatalmente acaba sendo ocupado por ideólogos e charlatães.

Pense com calma sobre essas questões, antes de conversar pelo “zap” no grupo do prédio ou no grupo da família, clamando para que as pessoas “ouçam os cientistas”. Não seria melhor ensiná-las a filtrarem fontes de informação e pararem de acreditar cegamente em indivíduos? Ou, mais importante ainda, voltarem a acreditar em instituições cruciais para a vida em sociedade, como a democracia e a ciência?

Recomendações práticas

Como este é um texto longo e denso, com várias camadas, recomendo principalmente que você o releia algumas vezes e medite com calma sobre os pontos que levantei, antes de concordar ou discordar destas ideias. De qualquer forma, para ajudar você a digerir e aplicar esta mensagem, seguem algumas recomendações mais concretas:

1. Acima de ser cientista, você é cidadão ou cidadã. Logo, tem o direito de professar a visão política que preferir. Tem também o direito de expressá-la publicamente ou simplesmente mantê-la na esfera privada, de acordo com suas convicções e realidade pessoais. O ponto é que não estou falando para você ser uma pessoa apolítica. Muito pelo contrário, o que eu sugiro é que você seja uma pessoa politicamente independente. Se for falar em público, defenda soluções e visões baseadas em evidências, sendo um embaixador ou embaixadora da ciência como cultura humana. Defenda ou ataque políticas ou ideias, mas nunca políticos, partidos ou instituições em geral;

2. Tome consciência de que, ao se comunicar com a sociedade na imprensa ou nas redes sociais, você está representando a sua universidade, a ciência e o Estado, mesmo que informalmente. Não adianta apelar para saídas hipócritas, como colocar disclaimers do tipo “views my own” no seu perfil em uma rede social, mas se comportar igual a um troll online. Tenha muito cuidado e mantenha o rigor, a transparência e a compostura;

3. Quando você achar que o seu parecer técnico como cientista pode ajudar a sanar dúvidas ou resolver problemas da sociedade, foque sempre em debater dados, interpretações e ideias, nunca pessoas ou instituições. Prefira atuar em instâncias formais, participando de audiências públicas, prestando assessoria a diferentes instituições públicas e privadas, ou dando entrevistas à imprensa, por exemplo. O mundo não precisa de mais um “guerreiro de teclado”;

4. Evite tentar passar mensagens complexas através das redes sociais. Construa mensagens complexas com cuidado em outros meios, como revistas científicas, revistas de divulgação científica, jornais, rádio, TV, sites, blogs, podcasts e canais de streaming. Depois use as redes sociais apenas para divulgar os links para esse conteúdo feito com cuidado e, de preferência, depois de ele ter sido revisado por cientistas ou jornalistas;

5. Não peça confiança cega às pessoas, especialmente em indivíduos. Ajude-as a recuperarem sua confiança nas universidades, nos poderes públicos e nas instituições democráticas como um todo. Muito mais importantes do que qualquer cientista ou político como indivíduos são as instituições que essas pessoas representam.

(Fonte da imagem destacada)

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2 respostas para ““Ouçam os cientistas!” – Mais quais?”

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