Fuja da corrida dos ratos acadêmica

Pois é, essa corrida nos assombra não apenas no mundo das finanças, mas também no mundo da ciência. Fique de olho aberto!

Sabe aquela sensação de que está sobrando mês no final do seu salário?

Quem nunca se sentiu assim? No mundo todo, mas especialmente em países periféricos como o Brasil, o sufoco de muita gente tem a ver principalmente com falta de educação financeira. Quero deixar claro que não estou falando de pessoas pobres ou miseráveis, cujos problemas são muito mais estruturais do que individuais. Estou falando de pessoas da classe média ou da classe alta, que, apesar de terem uma boa renda, não conseguem equilibrar receitas e despesas. Aí, mesmo quando recebem um reajuste de salário, ou quando progridem para cargos mais bem remunerados na carreira, aumentam seu custo de vida, por exemplo mudando para um bairro mais chique ou comprando um carro novo. Assim, estão sempre no sufoco e nenhum aumento de renda gera um alívio duradouro. A solução envolve mudar profundamente de mentalidade e estilo de vida.

Essas pessoas estão na corrida dos ratos. Pior que nem os ricos escapam dela, porque alguns conseguem criar estilos de vida tão surrealmente caros, que vivem sempre no sufoco. Você pode até estar rindo da cara desses “ricos ferrados”, mas será que você não vive num sufoco parecido na ciência, porque temos a nossa própria versão da corrida dos ratos? Qual foi a última vez em que você se sentiu realmente satisfeito com as suas pequenas e grandes vitórias na carreira? A corrida dos ratos não tem a ver apenas com grana, mas com consumismo em um sentido amplo, que envolve nunca estar satisfeito ou se sentir grato.

Se você já estiver estabelecido na carreira científica, com um emprego estável ou permanente, dentro ou fora da academia, ainda que seja um novato, evite o consumismo acadêmico. Eu sei que você passou anos e anos ralando muito para chegar onde chegou. Você teve que fazer escolhas difíceis e sacrificar muita coisa. Só que você precisa desligar o modo de batalha, depois que conquistar as metas que tinha estabelecido para si mesmo. Pare, respire e pense.

Será que você precisa mesmo viver pedindo auxílios à pesquisa o tempo todo? Garanto que é possível manter uma boa produtividade passando muito menos estresse. Escrever grants dá um trabalho enorme antes, durante e depois de cada projeto, ainda mais no Brasil, com a burocracia enlouquecedora que temos. E se você pedir menos grants, mas fizer pedidos mais inteligentes, focando em criar uma infraestrutura sustentável e acumular uma “reserva de emergência acadêmica” (veja esse conceito no segundo livro do blog), mantendo o seu laboratório em movimento mesmo em tempos de crise?

Será que você precisa mesmo publicar cada vez mais artigos? Isso pode até soar como cliché, mas quantidade não é qualidade. Por um lado, a grande maioria dos currículos inflados que vemos por aí não tem qualidade. Ou, se tem qualidade, olhando mais de perto você percebe o óbvio: os donos desses currículos não participam de verdade dos artigos que assinam. Por outro lado, se você quiser construir um currículo gigante de maneira honesta, isso provavelmente vai te custar caro em termos pessoais. E se você focar em desenvolver uma linha de pesquisa mais tranquila e sustentável, que te permita ir construindo um corpo de conhecimento coerente do qual você realmente se orgulhe no futuro?

Será que você precisa mesmo publicar em revistas com fator de impacto cada vez maior? Tudo bem que, por um lado, quem escreve um artigo quer que ele seja encontrado, lido, citado e usado. Considerando isso, revistas top são lidas e levadas a sério por mais gente, aumentando a chance de o seu artigo receber atenção não apenas da academia, mas até mesmo da imprensa. Só que, por outro lado, impacto não necessariamente significa qualidade, pois muita groselha também sai publicada no topo, ainda mais dentro de um sistema dominado por grandes editoras comerciais. Sem contar que a boa ciência não é feita apenas de trabalhos inovadores, mas principalmente de trabalhos incrementais. Não se esqueça ainda de que publicar em revistas top pode ser um processo frustrante, baseado em uma falsa meritocracia. E se você construir um portfólio de publicações mais equilibrado, incluindo também revistas menores, mas sérias?

Será que você precisa mesmo orientar dezenas de alunos ao mesmo tempo? Talvez você esteja sentindo falta de poder cuidar dos seus próprios projetos. Os grandes órgãos de fomento sutilmente pressionam os nossos PPGs a se tornarem cada vez maiores, sob risco de extinção ou fusão. Fora a competição pelas bolsas de produtividade oferecidas por esses órgãos, cujos critérios privilegiam a quantidade bruta de orientações. O sistema, portanto, cria incentivos concretos para os professores brasileiros orientarem multidões. Só que um laboratório inchado não necessariamente se torna um laboratório mais produtivo, muito menos um laboratório capaz de ajudar os alunos e postdocs a conquistarem seus sonhos. E se você pensar com calma sobre quantas pessoas consegue orientar ao mesmo tempo de maneira eficiente, considerando o seu perfil como orientador?

Será que você precisa mesmo entrar em cada vez mais colaborações? Vamos deixar claro que ninguém faz ciência sozinho, então colaborações são fundamentais. Elas permitem que pessoas com habilidades e conhecimentos diferentes trabalhem juntas para resolver um mesmo problema complexo. Sem contar que elas fazem bem ao currículo, sendo incentivadas por todos os órgãos de fomento. Contudo, elas também têm um lado sombrio, porque as relações humanas são complicadas e muitas vezes dão errado. Quanto mais gente você colocar na sua rede de interações profissionais, mais trabalho e mais estresse você trará para a sua vida, sem necessariamente fazer descobertas mais interessantes. E se você for mais seletivo nas suas colaborações, ponderando cuidadosamente com quais e quantas pessoas realmente vale a pena trabalhar?

Será que você precisa mesmo participar de cada vez mais comissões dentro da sua universidade? Tudo bem, vamos dar um desconto. Órgãos colegiados e comissões são mesmo importantes para manter a máquina girando. Só que algumas comissões são desnecessárias ou ineficientes. Para piorar, rola uma pressão para participarmos das piores, quando somos novatos. Acorde, pois existem formas de dizer “não” educadamente e escapar de fininho, senão você não consegue realizar de forma eficiente as suas atividades de pesquisa, ensino e extensão. Outro ponto é que tem gente que vive reclamando de ficar atolada em comissões, mas na verdade procura sarna para se coçar. O micropoder ganho sobre as vidas dos colegas alimenta o ego de alguns cientistas. Tem até alguns que chegam a usar a habilidade política aprendida nas comissões internas para depois darem um salto para a política partidária no mundo real. E se você refletir profundamente antes de aceitar convites para comissões, considerando de quais você precisa realmente participar e qual é o seu foco na carreira?

Será que você precisa mesmo ficar falando mal dos seus colegas que não publicam tantos papers quanto você? Fazer descobertas e reportá-las em artigos revisados pelos pares é, sim, a principal atividade de um cientista profissional. Mas ela não é a única, ainda mais no contexto de uma universidade, onde o ensino e a extensão são igualmente importantes. Fora a gestão, que não é tão agradável mas é necessária. Se você está com tempo para focar nas suas publicações, provavelmente tem outros colegas cuidando das aulas e das comissões do departamento para você. E se você procurar entender melhor as atividades de quem tem um foco diferente do seu, aprendendo a respeitar as diferenças e a ser grato por aliviarem a sua carga?

Refletindo sobre esses pontos, talvez você consiga evitar a sensação de que está sobrando estresse no final de cada projeto. Repense as suas escolhas e fuja da corrida dos ratos acadêmica. Só assim você vai ser capaz de saborear de verdade as alegrias da carreira.

“Este é o nosso mundo
O que é demais nunca é o bastante
E a primeira vez é sempre a última chance”

Legião Urbana, “Teatro dos Vampiros”

(Fonte da imagem destacada)

12 respostas para “Fuja da corrida dos ratos acadêmica”

  1. Complementando: Sobre colaborações, na minha experiência o que vale mesmo é achar pessoas com quem dá certo colaborar. É em grande parte tentativa e erro; mas quando se acha colaborações que funcionam – por “funcionam” eu não quero dizer “rendem publicações”, e sim “rendem publicações ao mesmo tempo que geram o mínimo de estresse e o máximo de diversão e aprendizado” – o trabalho fica muito mais leve e divertido. Mesmo que sejam uma ou duas colaborações apenas.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Concordo plenamente. Justamente por isso hoje eu fujo dos projetões temáticos. Já participei de vários, no começo da carreira. Na minha opinião, eles geram pouco retorno financeiro, muito estresse nas relações interpessoais e proporcionalmente pouco retorno científico. Isso, se comparados a projetos small science bem delineados e feitos em equipes pequenas e bem azeitadas. Mas isso se aplica ao tipo de tema que eu estudo, não a todos os temas.

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  2. Nossa, SIM! Eu estava precisando ler algo assim 🙂
    Cada pessoa tem seu nicho e não dá pra ser bom em tudo, né? Acho que é importante descobrir seu nicho e focar nele. E o foco não precisa necessariamente ser pesquisa! O meu é ensino, pesquisa e extensão – mais ensino, e menos das outras coisas; então para mim é importante publicar, mas não faço questão de ser em revistas mais top de linha; e é importante ter projetos de extensão, mas não precisam ser projetos que vão salvar o mundo. E é importante dar minhas aulinhas, e sim, quero que sejam (no futuro) as melhores do mundo. Bom, talvez quase. rsrsrs
    Por um lado, precisamos sempre nos aprimorar para não ficar para trás; por outro lado, existem limites né? E como você disse, fazer mais não significa fazer melhor; orientar mais gente não significa orientar bem…
    Isso de não precisar sempre pedir financiamento é real também… Muita pesquisa muito boa pode ser feita com poucos recursos, sendo que o principal recurso pode ser a bolsa de IC fornecida pela universidade. Tanto que até recentemente eu nem tinha estímulo para pedir financiamentos, porque conseguia fazer minhas pesquisas tranquilamente e tinha (e continuo tendo) dados para publicar por mais uns dois ou três anos. O estímulo agora é conseguir computadores pro lab e também financiamento para viagens de campo, porque campo faz falta!
    Enfim, eu realmente estava precisando ler algo assim 🙂

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    1. Obrigado, Pavel!

      “Muita pesquisa muito boa pode ser feita com poucos recursos, sendo que o principal recurso pode ser a bolsa de IC fornecida pela universidade” <- aqui está um ponto excelente!

      No Brasil, o nosso sistema de fomento é diferente dos sistemas americano, canadense, francês e alemão, por exemplo. Nossos salários e bolsas saem em separado dos grants, na grande maioria dos casos. Então, na hora de ficar buscando grana, dependendo do tipo de pesquisa que você realiza e da infra que já tem no lab, pode manter a sua equipe produzindo por um bom tempo apenas com pedidos de verba pessoal, e não verba para equipamentos, serviços ou consumo. As verbas para bolsas são muito menos estressantes de pedir, conseguir e prestar contas.

      Nos grants propriamente ditos, eu sempre priorizo material permanente, como os computadores que você falou. Assim, ao longos dos anos, fui criando uma infra estável e duradoura. Eu basicamente só escrevo novos grants, quando preciso substituir ou atualizar os computadores e demais equipamentos de TI do lab.

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  3. Grato por compartilhar e clarear o mundo obscuro da ciência no Brasil. Digo obscuro pelo quase desprezo total pelo poder público…

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  4. Grato pelo tempo em partilhar esse ponto de vista interessante… raramente se tem a oportunidade de saber um pouco de como funciona a vida dos cientistas brasileiros.

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