Acabei de experimentar esse tipo de intercâmbio sênior pela primeira vez, então vim aqui correndo compartilhar a experiência em primeira mão.
Vida de professor não é mole… Você já teve a sensação de que não consegue mais cuidar dos seus próprios projetos? Depois que você passa de fase na carreira, fica o tempo todo fazendo “as coisas dos outros”. Ou seja, analisando dados, limpando códigos, revisando textos, lapidando slides e desenvolvendo ideias dos seus alunos e colaboradores. Isso, fora o tempo gigantesco consumido por aulas e burocracia. Calma, pois existe uma solução que permite ao mesmo tempo aliviar essa angústia e renovar as suas energias: os sabáticos!
Antes de prosseguirmos, você lembra quando contei sobre a Alexander von Humboldt-Stiftung e seus incríveis programas de intercâmbio? Pois é, participei de mais um deles, desta vez fazendo um sabático curto no Departamento de Biometria e Análise de Sistemas Ambiental, na Universidade de Freiburg, Alemanha. Mais precisamente, participei do programa Erneute Forschungsaufenthalte in Deutschland (veja aqui a chamada em inglês), voltado para os alumni estrangeiros. Como não poderia deixar de ser, o pacote de professor convidado (com status de Humboldt Fellow) inclui uma generosa bolsa, além de um belo overhead (reserva técnica institucional) para o anfitrião.
Resumindo: Humboldt, eu te amo! 💕

Foi o meu primeiro sabático! Recomendo fortemente a experiência, assim como todos os intercâmbios acadêmicos no país e no exterior. Há um tipo de intercâmbio para cada fase da carreira, então pesquise as suas opções.
“Mas, Marco, que parada é essa de sabático? O que você fez não seria um postdoc, já que era uma missão de trabalho?”
O que é um sabático?
Excelente pergunta, meu caro novato ou mestre! Realmente rola muita confusão quanto à nomenclatura dos intercâmbios de faixas pretas. Primeiro, porque ela varia entre países e agências de fomento. Segundo, porque ela tem mudado recentemente. Bom, desde séculos atrás até a virada do milênio, quando um professor saía de licença da universidade dele para trabalhar em outra universidade ou instituto de pesquisa, isso era chamado de sabático.
Daí vem a primeira confusão. Sabático, fora da academia, é uma expressão usada quando alguém se afasta temporariamente de seu emprego e carreira para cuidar da vida pessoal. Por exemplo, pedindo uma licença não-remunerada para passar um ano aprendendo surf no Hawaii ou vivendo como monge em um templo zen no Japão. Só que fazer sabático, na academia, significa trabalhar em outra instituição por um tempo que varia de alguns meses a um ano, às vezes mais. Não tem nada a ver com crise existencial ou férias!
OK, isso pode até parecer com o que fazemos em um postdoc, mas há uma diferença crucial. Tradicionalmente, quem faz postdoc é um cientista early career, que já se doutorou, mas ainda não conquistou um cargo estável na academia ou no “mundo conhecido”. Talvez isso fique mais claro olhando para o nome em português: “pós-doutorado”. Ao fazer um postdoc, a pessoa muda de instituição em definitivo. Na verdade, nessa etapa da Jornada do Cientista, a gente vive de mudança em mudança até se estabelecer em algum lugar. Sobrevivendo a essa mobilidade forçada, um postdoc serve para o amadurecimento profissional e a consolidação da linha de pesquisa escolhida no doutorado.
Por sua vez, um sabático serve para um cientista já empregado, geralmente de mid career para frente, dedicar-se a uma colaboração intensiva, mas depois retornando à sua universidade de origem. Outro ponto central é poder focar quase exclusivamente em apenas um dos pilares da carreira: a pesquisa. Você ganha liberdade para deixar de lado ensino, orientação, extensão e gestão por um tempo, se quiser. Na verdade, existem também sabáticos de ensino, em que você é convidado a dar aulas ou ajudar a dar uma turbinada em um programa estrangeiro. Para explicar melhor, vou usar a minha experiência recente como exemplo. Não que ela seja a única forma de aproveitar um sabático ao máximo, mas acho que assim fica mais didático.
De onde veio a ideia de fazer um sabático?
Desde 2016, tenho colaborado com o Prof. Carsten Dormann, chefe do departamento que visitei e criador do bipartite, o famoso pacote de R usado por quem trabalha com redes ecológicas. Já escrevemos quatro artigos juntos. Ele coorientou um doutorando meu e está colaborando com outro no momento. Na verdade, nos conhecemos em 2009, quando ambos éramos postdocs e eu participei de um workshop que ele organizou na Universidade de Göttingen, Alemanha. Porém, só alguns anos mais tarde transformarmos as nossas conversas eventuais em projetos. Hoje ele é um dos principais colaboradores da linha de pesquisa central do nosso laboratório. Juntos, estamos desenvolvendo uma nova teoria sobre regras de montagem de redes de interações.
Considerando a importância dessa colaboração, desde 2017 eu vinha maturando um plano de passar um tempo na Abteilung dele, porque nada substitui interações presenciais. Só que em 2018 eu mudei de universidade, tendo que adiar o plano. Em 2020, quando eu finalmente estava pronto para ir a Freiburg, com a vida em ordem na nova universidade e com o grant já aprovado pela Humboldt, veio o coronapocalipse. Após dois anos de adiamentos consecutivos, acompanhando o desenrolar da pandemia, em julho deste ano finalmente consegui colocar o plano em ação.
Foi uma das melhores coisas que fiz na carreira! Minha saudosa mentora e outros grão-mestres sempre me contavam sobre as vantagens de fazer sabáticos. Pude comprová-las na prática. Mas por que essa experiência foi tão proveitosa?
As delícias do meu sabático
Primeiro, o meu Gastgeber, o Prof. Dormann, foi muito hospitaleiro, dando-me condições de trabalho excelentes. Ganhei uma sala enorme só para mim, equipada com uma workstation de ponta, à qual só precisei plugar o meu bom e velho MacBook para botar a mão na massa. Para melhorar, recentemente, uma antiga doutoranda que eu coorientei há muitos anos, a Profa. Katrin Heer, tornou-se professora na mesma universidade e inaugurou o Departamento de Genética Florestal. Ela me acolheu com muito carinho, como um verdadeiro “Doktorpate” (Versteher werden es verstehen), fazendo com que eu me sentisse em casa. Vielen, vielen Dank, Carsten und Katrin!

Segundo, desde que virei professor, eu sentia aquela angústia comentada lá no início. Eu não tinha mais tempo para focar de verdade na pesquisa, muito menos nas minhas coisas. Como todos os novatos, fui atropelado por um caminhão de novas atribuições, que só se multiplicam com o passar dos anos. A principal delas é o ensino, que toma um tempo enorme em todas as universidades brasileiras, graças à tara que temos pela pedagogia passiva. A burocracia então, prefiro nem comentar, porque dá gatilho (rs). Por isso, foi sensacional passar três meses inteiramente focado no meu próprio projeto de pesquisa, que representa a espinha dorsal do nosso lab, ao invés de ficar sempre fazendo as coisas dos outros.
Terceiro, como não me canso de repetir, não há nada como trabalhar em uma universidade de primeiro mundo. Sério, há um abismo de diferença, mesmo em relação ao Brasil, que é um país rico, mas em desenvolvimento (ou seria em retrocesso?). Não vou ficar aqui listando novamente todas as diferenças entre mundos, porque você pode ler mais sobre elas em outro post. Passe um tempo em uma universidade de ponta, em um país como a Alemanha ou a Nova Zelândia, e entenderá em seus ossos o que eu e a Renata não podemos explicar direito com palavras.
Quarto, eu tinha ficado confinado em casa por dois anos, respeitando as recomendações científicas para o controle da pandemia (você também se sentiu sozinho, igual otário?). Mas em maio deste ano fui obrigado a voltar ao ensino presencial. Mesmo após quatro doses das vacinas, usando máscara PFF2 o tempo todo, acabei pegando corona junto com metade da turma, em uma sala de aula praticamente hermética, sem ventilação alguma. A covid se misturou às minhas alergias respiratórias, como eu já imaginava, virando coronasma. Fiquei no coronainferno por 40 dias, zerando a cartela dos sintomas no coronabingo. Ainda bem que não morri e consegui me recuperar a tempo de pegar o voo sem estar contagioso. Foi incrível voltar a respirar e a sentir cheiro e gosto, além de ter uma vida mais livre e interagir de verdade com outros cientistas! Isso, apesar de eu ser um nerd que adora ferramentas tecnológicas, sendo também um entusiasta do ensino online para finalidades específicas (novamente, nada substitui interações presenciais!). Abri-me novamente ao mundo, conheci muita gente nova, reencontrei velhos amigos e voltei com o meu networking renovado.

Quinto, o meu sabático veio com alguns bônus incríveis. Eu esperava focar a minha estadia em reuniões presenciais e ciência de dados, bem ao estilo nerd, já que fui para um departamento especializado em biologia computacional. Só que, do nada, fui convidado para participar de um curso de campo do Mestrado em Ciências Ambientais. Fizemos uma excursão para a ilha de Helgoland, no Mar do Norte, um lugar paradisíaco que sempre quis visitar, mas nunca tivera a oportunidade. Assim, além de alimentar a minha veia aventureira pela primeira vez desde que entramos no coronamundo, conheci uma biota marinha totalmente nova para mim e matei a saudade de dar aulas no campo, um prazer que não cultivava havia vários anos.


Além disso, fui convidado a participar como “palpiteiro externo” da reunião de outono de um projetão temático do qual nem sou membro. Graças a esse convite, pude não apenas conhecer o lindo Nationalpark Bayerischer Wald, como também reencontrar vários amigos de uma só vez e talvez ajudá-los de alguma forma.

Como se comportar em um sabático
Tive tantas experiências boas e aproveitei ao máximo o meu primeiro sabático, principalmente porque tomei todas as precauções recomendadas pelos meus mentores. Aqui vou resumir essas precauções em três pontos, que formam uma espécie de etiqueta para sabáticos.
Primeiro, postura. Comporte-se como um professor e será tratado como tal. Deixe o complexo de vira-latas no Brasil: em hipótese alguma fale mal do seu próprio pais e nunca se autodeprecie, nem mesmo para dar uma de humildão. Leve na sua mala apenas profissionalismo, autoestima e cordialidade. Saiba claramente porque decidiu fazer sabático na tal instituição e alinhe as suas escolhas a essa missão. Além disso, não se coloque em um papel submisso, como nos tempos de aluno, pois agora você também já é um faixa preta, lidando de igual para igual com o anfitrião. Saiba expressar claramente as suas expectativas. Pergunte claramente quais são as expectativas dele. Descubra como funciona a cultura de trabalho local e respeite-a. Como diria o Prof. Lee, “seja água“.
Segundo, postura. Apesar de se comportar como um professor, e não como aluno ou postdoc, saiba ser o “beta” do grupo. Você é o chefe do seu lab, mas não do lab dos outros. O seu anfitrião é o “alfa” local, então respeite a autoridade dele. Não o contradiga na frente da equipe. Não dispute atenção com ele. Saiba ressaltar as coisas positivas que observar. Evite atritos desnecessários.
Terceiro, postura. Mesmo tendo uma missão bem definida a cumprir, abra-se para oportunidades inesperadas. Não seja cabeça dura, empacando em uma mentalidade do tipo “só vou fazer o que prometi no grant“. Passando alguns meses em outra instituição, em um país estrangeiro, imerso em outra cultura, muitas novas portas se abrirão. Mantenha a sua mente aberta.
Como conseguir grana para um sabático
Essa parte é mais simples do que muita gente pensa, pois não faltam oportunidades para diferentes perfis de cientista. Basta você ser um profissional com uma carreira sólida, respeitado pela sua comunidade e com boas conexões. Atendendo a esses requisitos, você pode financiar um sabático mais ou menos da mesma forma como financia outros tipos de intercâmbio. Tudo depende de para qual país e universidade você quer ir. E, principalmente, de quem vai te receber.
Por exemplo, se você também tiver a Alemanha como alvo, porque tem uma ótima parceria com um cientista de lá, pode pedir grana à Humboldt. Se você for alumnus da fundação, dê uma olhada no mesmo programa para o qual apliquei, que permite novas estadias de até três meses. Já se você nunca tiver feito nenhum tipo intercâmbio humboldtiano, pode aplicar para um dos vários outros programas com perfil sênior. Em terras germânicas há ainda vários outros financiadores potenciais, como a Comissão Européia e os renomados institutos de pesquisa, especialmente Max Planck, Fraunhofer e Leibniz.
Para outros países há muitos outros financiadores. Sério, dezenas ou centenas, até mesmo a própria universidade que vai te receber. O primeiro passo então é definir quem será o seu anfitrião, pois todo o resto é consequência dessa escolha. Você deve perguntar quais financiadores ele sugere. Um sabático não surge do nada, mas nasce naturalmente a partir de uma colaboração já amadurecida.
Como cuidar do seu lab à distância
Vários colegas lá de Freiburg me perguntaram: “Herr Mello, como a senhorrr está cuidando do seu lab no distância?” Acima de tudo, para sair tranquilo em sabático, é preciso se certificar de que você não está jogando abacaxi no colo de ninguém. Assim, para evitar espetar algum colega, marquei a estadia para o meu semestre de pesquisa, quando não dou aulas. Também é fundamental manter tudo bem organizado no dia a dia, para que a máquina consiga girar sozinha por um tempo na sua ausência.
Fora isso, três coisas facilitaram muito o gerenciamento do meu lab à distância.
Primeira, os dois anos de trabalho remoto durante a pandemia me ofereceram um treinamento forçado, no calor da batalha, sobre como gerenciar uma equipe via internet. Sempre fizemos uma boa dose de trabalho híbrido no lab, até mesmo por causa das nossas colaborações nacionais e internacionais. Só que, durante a “quarentena de Schrödinger”, aprendemos a usar novas ferramentas de trabalho remoto, que facilitam enormemente a comunicação e a colaboração em tempo real, englobando desde a redação até a programação.
Segunda, foi vital colocar uma boa sous-chef no comando. Pensando nisso, nomeei uma mestranda, a Cristina Kita, a qual admiro muito e na qual tenho plena confiança, como responsável pelo lab durante o meu sabático. Ela ficou encarregada de resolver eventuais pepinos presencialmente e de fazer o meio de campo com a burocracia do departamento, no caso das coisas que eu não podia resolver à distância. A última palavra sempre cabia a ela nesse período.
Terceira, a atual geração do lab estava toda em uma fase do meio para o final dos respectivos cursos de mestrado e doutorado. Por causa disso, nenhum aluno estava precisando de uma atenção mais intensiva, típica da fase de ingresso. Tudo o que eu podia fazer por eles era possível resolver usando as tais ferramentas novas, o que facilitou muito as coisas.
Moral da estória
Enfim, esse sabático de apenas três meses foi uma experiência de renascimento no pós-pandemia! Construí novas pontes e voltei com novas cartas na manga, que pretendo usar nos games da pesquisa e da internacionalização. Só para dar um exemplo concreto, uma ideia que era para render um paper de síntese já está rendendo pelo menos quatro. Isso, fora todos os ganhos na vida pessoal, considerando que a Alemanha é um país que eu amo, com o qual tenho uma longa relação e no qual vivem amigos muito queridos.
Faça um sabático e não se arrependerá!
(Imagem destacada: ponte no coração da Floresta Negra. Foto por Marco Mello.)
Parabéns pelo texto!
Estou passando por este momento exatamente agora e seu texto também resumiu o que estou sentindo. Abraço.
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Obrigado, Gustavo! Que o seu sabático possa lhe render ótimos frutos!
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