A tirania do mérito acadêmico

Sabe aquela sensação agridoce, tipo um vazio, quando acabamos de ler um bom livro? Pois é, estou me sentindo assim agora, então gostaria de compartilhar minhas impressões contigo.

São Paulo, Avenida Paulista, dia 31 de dezembro. Calor nuclear, asfalto em brasa e uma multidão vibrando, contando os minutos. Você pensa: “onde eu estava com a cabeça, quando resolvi me inscrever na Corrida Internacional de São Silvestre?” Bom, agora não tem mais volta. Você já está ali, diluído no pelotão geral. Mesmo sendo bem mais curta do que uma maratona, alcançar a linha de chegada dessa corrida já é uma vitória. Tudo bem, você firmou um compromisso sério consigo mesmo e investiu em uma preparação profissional desde o começo do ano. Superou todos os seus limites nos treinos. Agora é “olho de tigre, Rocky!”

Só que, do nada, a banca do concurso, digo, comissão organizadora, te remove dali e diz que você precisará largar 5 km atrás do pelotão geral. Ou seja, você terá que se esforçar ainda mais do que pensava e muito mais do que todo mundo. Aí você pergunta:

“Por que, meu Deus, por quê?!”

Os gatekeepers te respondem que pessoas como você sempre largaram atrás e que pedir para largar junto com os outros é anti-meritocrático… No mínimo, você ficaria frustrado, né? Se essa cena se repetisse por vários anos seguidos, talvez você até criasse um ranço da São Silvestre, né? Muita gente vive uma frustração parecida na academia.

Após anos refletindo sobre essa frustração coletiva, que aflige tanto perdedores quanto vencedores e, com o passar dos anos, se transforma em ressentimento, resolvi falar mais abertamente sobre a meritocracia. O gatilho foi ler o sensacional livro “A Tirania do Mérito“, escrito pelo Prof. Michael Sandel. Confesso que dá um certo nervoso entrar nessa treta, ainda mais em um mundo toxicamente polarizado e vigiado por polícias ideológicas e algoritmos comerciais. Mas a proposta deste blog sempre envolveu discutir temas que todo mundo prefere varrer para debaixo do tapete, então vamos lá.

Quem é essa tal de meritocracia?

Originalmente, a meritocracia nasceu como uma resposta à aristocracia. Ou seja, trocando em miúdos, ao invés de alguns poucos eleitos herdarem os melhores recursos porque nasceram em famílias nobres, outros poucos eleitos conquistariam os melhores recursos por merecê-los. Esse novo sistema parece muito mais justo, não?

Mais ou menos. Em ambos os casos, promove-se uma desigualdade tóxica, que vai se retroalimentando com e tempo e chega a níveis abismais. Para piorar, promove-se junto uma erosão do senso de bem comum ao se tentar operacionalizar o conceito de “mérito”. Isso acaba cobrando um preço altíssimo. Na verdade, o termo “meritocracia” foi inventado em um contexto crítico, debochando do culto ao mérito que surgiu no pós-guerra do século XX. Reflita sobre alguns pontos levantados pelo Prof. Sandel no livro que acabei de ler:

“Mas isso também significa que aqueles que chegam ao topo passam a acreditar que merecem o sucesso. Ademais, se oportunidades são verdadeiramente iguais, significa que aqueles deixados para trás também são merecedores do seu destino.”

“Isso confere ao sucesso meritocrático uma psicologia moral contraditória.”

“De Aristóteles à tradição republicana estadunidense, de Hegel à Doutrina Social da Igreja, teorias sobre justiça contributiva nos ensinam que somos seres humanos mais completos quando contribuímos para o bem comum e conquistamos a estima de nossos companheiros cidadãos pelas contribuições que fazemos.”

“Mas o modo como uma sociedade honra e recompensa o trabalho é importante para a maneira como ela define o bem comum.”

(A Tirania do Mérito, Michael Sandel)

A meritocracia acadêmica

Muita coisa para digerir, né? Sugiro que você pense com calma sobre cada um desses pontos e saboreie o livro inteiro.

Já pensou que essas ideias também se aplicam à nossa realidade na ciência? Já pensou que essa onda de ressentimento, que está corroendo democracias no mundo todo, também corrói a academia? Ou você considera o nosso ambiente de trabalho realmente saudável? A academia está sendo atacada por fora, porque já estava implodindo por dentro. Políticos populistas e totalitários de diferentes matizes sentem de longe o cheiro de sangue.

Ao invés de se manterem como templos do conhecimento, aos poucos, as universidades foram adotando o ethos das corporações e se tornando cada vez mais parecidas com elas. Notamos isso desde o sistema de publicação acadêmica até às políticas de progressão de carreira, que agora colocam a captação de verbas em pé de igualdade com a geração e difusão de conhecimento.

Apesar de todos esses incentivos concretos apontarem na direção do produtivismo, hoje, nas universidades e institutos de pesquisa, muito se prega sobre diversidade, inclusão e acolhimento. Infelizmente, o discurso inflamado nas assembleias raramente se converte em empatia prática nos corredores. Ninguém dá parabéns para ninguém, ou sequer bom dia, mas todos acham que nasceram para redimir o mundo. É a praga do puritanismo, importada dos países centrais, que nasceu na direita e depois contaminou a esquerda, estimulando todos a sinalizarem virtudes que não praticam.

Só que, no fim das contas, “ao vencedor, as batatas“, como diria o bom e velho Machado de Assis. Via de regra, salvo admiráveis exceções, quem ganha os melhores recursos, em diferentes estágios da carreira de cientista, é quem sacrifica sua vida pessoal ou seus colegas. Isso pode soar cruel, ou até mesmo psicopático, mas acontece ali mesmo, no chão da universidade. Esse mito do “one man army” é reforçado por iniciativas para lá de questionáveis, como os prêmios Nobel e as medalhas acadêmicas.

Já quem escolhe ter uma vida equilibrada, exercitar a empatia e construir conhecimento de maneira sólida e sustentável perde vantagem competitiva em uma carreira de alta performance, atualmente focada em resultados vistosos de curto prazo. Pode até alcançar sucesso pela ótica de alguém que é ambicioso, mas não ganancioso. Só que nem sempre consegue abocanhar os melhores recursos ou se manter no top 5%. Ainda mais em universidades que idolatram a cultura corporativa e usam as bolsas de produtividade como as redes sociais usam os selos de verificação. Ainda mais em tempos de crise, quando “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Isso é especialmente nocivo, porque a maioria das pessoas confunde identidade, trabalho, profissão, emprego e meio de vida.

Pratique a empatia

Fazendo um paralelo com as citações do livro, como devem se sentir os colegas que, dentro da universidade:

  1. São humilhados em progressões de carreira, porque “dão aulas demais e publicam papers de menos”?
  2. São penalizados em avaliações institucionais, porque “participam de comissões demais e publicam papers de menos”?
  3. São desdenhados por colegas de departamento, porque “só publicam nas revistas erradas“?
  4. São preteridos em avaliações de bolsas de produtividade, porque “orientam poucos alunos de cada vez”, mesmo que os orientem com excelência?
  5. Ouvem dos colegas que “a FAPESP (ou o CNPq) está aí para todo mundo, então você não ganha projeto porque não pede!”
  6. Ouvem dos colegas que “são crápulas”, porque não seguem a mesma ideologia que eles?
  7. Ouvem dos colegas que “são vagabundos”, porque não têm o mesmo foco na carreira que eles?
  8. Nunca abocanham sequer um pedacinho das verbas institucionais do próprio departamento, que teoricamente serviriam para fomentar o bem comum, porque “não são produtivos”?
  9. São descredenciados de PPGs pelos colegas, porque “não são produtivos” e “a CAPES não gosta disso” (troque CAPES por Mercado e esse discurso encaixa em vários outros lugares…), aumentando a cisão entre departamentos e PPGs que virou moda nas universidades públicas?
  10. Ao longo dos anos, caem numa espécie de vórtice, cada vez conseguindo captar menos alunos e recursos, sem progredir horizontal ou verticalmente na carreira, o que os leva a serem considerados cada vez menos “produtivos”, matando sua autoestima e seu senso de realização profissional?

Aqui no blog, já abordamos alguns desses pontos em outros posts. Dê uma olhada nos pacotões sobre carreira, nos ensaios e nos devaneios. O ressentimento é a chave para entender pelo que estamos passando e para onde caminhamos.

Para ir ainda mais fundo nas raízes do ressentimento global, novamente, leia o livro do Prof. Sandel e também este outro livro perturbador. Depois, voltando para o nosso pequeno mundo, reflita sobre a numerologia líquida (sensu Bauman) usada para avaliar o impacto acadêmico em diferentes escalas, dos países aos indivíduos, passando pelos PPGs. Reflita sobre como essa numerologia muda constantemente, puxando a brasa para a sardinha de quem está no poder no momento. Reflita sobre como essa numerologia torna impossível alguém planejar a própria carreira no longo prazo tentando agradar ao sistema. Reflita sobre os efeitos que essa numerologia tem sobre as nossas relações interpessoais, saúde mental e contribuição para a humanidade.

Caia na real

Não quer dizer que o mérito não seja importante, muito pelo contrário, ainda mais em carreiras que exigem um perfil muito específico. Só que ainda mais importante do que operacionalizarmos nossos valores de forma mais transparente é evitarmos a formação de castas. Precisamos garantir que pessoas com diferentes focos na carreira se sintam igualmente valorizadas, já que todos dependemos uns dos outros. Os vencedores nunca vencem sozinhos. Só há colegas que conseguem focar nos papers (a grande moeda acadêmica), porque há colegas que cuidam das aulas e comissões do departamento.

O mais importante, no fundo, é ter consciência de que o mérito é apenas um dos ingredientes do sucesso, que também é feito de ajuda e sorte, muita sorte. A sorte se manifesta em coisas das quais você sequer se dá conta, como por exemplo nascer com um talento natural que é valorizado na sua sociedade, no seu tempo. Esse tipo de “match social” não tem nada a ver com justiça, fica totalmente fora do seu controle e não depende em nada do seu esforço. Mas pode te fazer largar na frente até mesmo do pelotão de elite da vida.

Enfim, se você quiser se tornar um cientista profissional, minha sugestão é aprender não apenas as regras do jogo, mas também como apanhar e seguir em frete. E, acima de tudo, tomar consciência de que nunca é bom o suficiente, de modo que você possa fugir da corrida dos ratos acadêmica.

Com isso tudo em mente, caso você alcance sucesso na carreira, não se esqueça de exercitar sua empatia. Sempre olhe para cima, para baixo e para os lados. Lembre-se de que faz parte de uma sociedade. Não acredite que pode pensar apenas em si mesmo, sem sofrer as consequências. Olhe o que o Prof. Sandel disse no livro:

“Quem vence no campo de batalha do mérito emerge triunfante, mas ferido.”

(Imagem destacada: São Silvestre 2022, foto por Marco Mello.)

Rindo para não chorar

Agora falando sério

15 respostas para “A tirania do mérito acadêmico”

  1. Sensacional!!!

    Compartilho dessa reflexão. 

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    div>Parabéns pelo conteúdo!!!

    Priscila Sperandio

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  2. Ótimo texto! Vou precisar reler ele umas duas vezes, quando eu estiver menos distraído 🙂
    Dois comentários…
    – Me identifiquei muito com a parte de sacrificar a vida pessoal; tipo, quando estava prestando o concurso aqui, fiquei três meses sem fazer faxina em casa, e olha que eu morava numa kitinete.
    – Uma questão essencial de ser discutida é a sobrecarga constante… E na verdade, eu já me senti criticado por querer trabalhar em artigos (fazer pesquisa) ao invés de fazer outras coisas. Sendo que eu faço muita pesquisa, ensino (sempre acima das 8 horas semanais exigidas, e muito acima das 4 horas horas semanais exigidas para quem tem cargo de chefia), extensão e administração (inclusive coordenação de curso). E parece que as demandas pra fazer mais e mais coisas são cada vez maiores. Consequência: ainda em quase cinco anos não consegui escrever um projeto de pesquisa decente, apesar de publicar bem. 😦 E nem me dedicar como quero às minhas disciplinas, aos projetos de extensão, às orientações… Parece que sempre se quer que se faça mais e não que se faça melhor…

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    1. Obrigado, Pavel!

      Pois é, todos nós, que conseguimos chegar ao final da Jornada do Cientista e nos estabelecer em um cargo estável, invariavelmente tivemos que fazer sacrifícios. O ponto do texto é que alguns de nós acabam tendo que fazer o dobro, o triplo ou mais do sacrifico médio, porque partiram lá atrás do pelotão geral da São Silvestre acadêmica. Mas, no final das contas, todos acabam sendo medidos pela mesma régua. Na minha fase de postdoc e professor novato, por exemplo, descuidei-me completamente do corpo e do espírito, focando demais na mente, e paguei um preço caro por isso.

      Quanto à sobrecarga, parabéns: você descobriu na pele o que significa o mantra: “o sistema privilegia a quantidade em detrimento da qualidade”. Na real, o sistema é cruel em qualquer carreira de alta performance, então você precisa aprender a se proteger. Uma coisa que sempre ensino aos meus padawans é a fazerem planos concretos e manterem a disciplina. Senão, os colegas, em qualquer fase da carreira, jogam parte da carga deles em cima de você sem dó. Quando mais um padawan cresce e aparece, mais rêmoras e sanguessugas tentam se grudar nele. Se você não aguentar e quebrar, problema seu, porque sempre tem um novo novato para pegar a carga que você derrubou. Controle a sua agenda e descubra o poder do “não”, senão vão controlar a sua agenda por você. Outro desafio é aprender a equilibrar colaboração, doação e autoproteção. Sirva à sua comunidade, mas não a deixe te sugar.

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      1. Esse texto realmente toca em várias “feridas acadêmicas” que só têm aumentado com o tempo. Uma delas é essa questão do “largar atrás do pelotão” e ter que lidar com a síndrome do impostor porque você parece nunca estar apto a “cruzar a linha de chegada”. A outra é esse acúmulo excessivo de tarefas que se transformou em algo essencial sem o qual você também não “cruza a linha de chegada”. Não faz sentido você ter que dispor a tantas responsabilidades para ficar um pouco mais próximo do critério de elegibilidade de um concurso, por exemplo, ou para conseguir uma bolda de produtividade. Estamos sendo engolidos por um sistema que nós mesmos alimentamos. Parece que estamos no trecho da música Será “nos perderemos entre monstros da nossa própria criação…”. Não estou dizendo que não temos que assumir responsabilidades; temos. Mas descobrir o poder do não, como o professor sugeriu, é libertador. Focar nos aspectos que não são negociáveis (ex. saúde mental efísica, afeto…) e se fazer a pergunta: essa demanda é essencial na minha vida pessoal/profissional? Não? Então não vou assumir essa responsabilidade. O livro “Essencialismo: a disciplinada busca por menos” do Greg McKeown ajuda bastante nesse ponto. Ah, falei isso tudo, mas sou apenas mais um Padawan na luta para sobreviver na ciência. Professor Marco, qualquer dia desses a gente se esbarra pelo IB. Abraço e parabéns pelos textos sempre cirúrgicos!

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        1. Muito obrigado, Johnny! Então você também trabalha no IB? Bora tomar um café um dia desses.

          Quanto ao problema em questão, sim, concordo que devemos pensar sobre estilos de vida alternativos. O essencialismo, que você mencionou, é um ótimo exemplo. Já leu também este livro, mais focado ainda nessa questão do sobretrabalho: “Bullshit Jobs: A Theory” (Graeber 2018)? Eu, pessoalmente, busco meu equilíbrio na religião e no esporte. Se não fossem o zen, a musculação e as artes marciais, eu já teria quebrado há muito tempo, especialmente depois que entramos no coronamundo.

          Mas, no fundo, a decisão mais importante de todas é: eu quero mesmo correr atrás de uma carreira de alta performance? Se mais orientadores fossem realmente conscientes da realidade da nossa carreira, menos alunos sofreriam desnecessariamente. Os orientadores também sofreriam menos. Isso porque, por mais que precisemos conversar sobre o sistema e melhorá-lo o tanto quanto for possível, uma carreira de alta performance nunca será saudável de verdade. Isso vale para a academia, o mundo corporativo, a música de orquestra, o esporte olímpico, o alto sacerdócio e por aí vai.

          “Sad but true”, como diria aquele famoso filósofo, o Metallica.

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          1. Sim, EsTou posdoc no LabTrop desde julho do ano passado. Será um prazer um tomar um café. Vamos, com certeza. Daí, a gente troca uma ideia.

            Abraço.

            E, ah, vou dar uma olhada na indicação do livro. Não tinha esbarrado nele ainda.

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