CORE-Ecol: um novo currículo de Ecologia

Eis uma proposta: ecólogos do mundo todo deveriam se organizar para desenvolver um novo currículo/livro-texto de Introdução à Ecologia. Ele deveria estar disponível gratuitamente online e pertencer à comunidade. O que vocês, ilustres leitores, acham dessa proposta?

Este é um post convidado, escrito pelo Prof. Westoby, da Austrália. Quando publicamos o nosso artigo sobre o Currículo Canônico de Ecologia, ele nos escreveu para trocar ideias. Ficamos felizes em saber que ele também vinha pensando intensivamente há anos sobre a mesma questão. Então o convidamos para compartilhar sua visão aqui no blog. Veja a seguir a versão em português do post ou, se preferir, a versão original em inglês no final.

Por Mark Westoby
School of Natural Sciences, Macquarie University, Sydney, Austrália
https://markwestoby.wordpress.com/

Existe um modelo e uma inspiração para tal projeto no CORE-Econ, um currículo comunitário (e livro didático) de Introdução à Economia. Ele foi lançado em 2013 e já está em uso por cerca de 400 universidades ao redor do mundo. Por favor, visite o site CORE-Econ para conferir a visão de mundo e a riqueza de recursos que ele oferece. Embora os materiais do CORE-Econ estejam disponíveis online, seu objetivo é apoiar o ensino presencial e não o substituir pelo remoto.

Uma motivação para montar um CORE-Ecol seriam os benefícios práticos. Ele poderia ser gratuito para estudantes e professores. Poderia aproveitar a criatividade de milhares de pessoas que ensinam Introdução à Ecologia em diferentes países. Poderia tornar-se realmente internacional, não estando limitado pela experiência de dois ou três autores. O formato online poderia acomodar facilmente estudos de caso e debates, bem como princípios.

Uma outra motivação seria a questão da atualização do currículo. Isso é o que mais me motiva. O currículo deveria evoluir reciprocamente com as agendas de pesquisa. Ele só seria amplamente adotado, se os pesquisadores sentirem que ele aborda questões relevantes. Mas também, se conseguisse saltar um pouco à frente das modas atuais que dominam a pesquisa, teria potencial para moldar o pensamento da próxima geração sobre quais questões seriam mais importantes e sobre qual seria o escopo geral da Ecologia.

A Ecologia mudou muito durante as décadas de 1950-1960. Muitas dessas mudanças foram cristalizadas nos livros didáticos amplamente adotados, escritos por Krebs (primeira edição em 1972), Ricklefs (primeira edição em 1973) e Begon-Harper-Townsend (primeira edição em 1983). Eles passaram por várias edições nos 50 anos seguintes, geraram versões mais curtas e ainda estão em uso. Todos têm uma sequência semelhante. Começam com os indivíduos e como eles lidam com o ambiente físico, depois passam para a dinâmica populacional, depois as interações entre pares de populações (competição, predação, parasitismo, mutualismo), depois as “comunidades”, que são redes multiespécies de interações populacionais, depois os “ecossistemas”, ou seja, comunidades a partir da perspectiva do fluxo de energia e dos ciclos de nutrientes. O título de Begon-Harper-Townsend reflete essa sequência, pois começou como “Ecologia: Indivíduos, Populações e Comunidades” e posteriormente foi ajustado para “Ecologia: de Indivíduos a Ecossistemas”. Tenho quase certeza de que essa sequência ainda prevalece na maioria dos livros-texto, embora não tenha dados para demonstrar isso.

Gostaria de ver um novo currículo que começasse com a questão: dada uma localização na geografia física – temperatura, precipitação, luz, regolito, ressurgência, ação das ondas – que estrutura de ecossistema poderia potencialmente emergir? Por estrutura de ecossistema quero dizer especialmente as espécies fundamentais que estruturam o habitat – árvores e seus detritos, corais, bancos de mexilhões – e de onde vêm e para onde vão os principais fluxos de energia e nutrientes. Paralelamente a perguntar que estruturas são possíveis, é importante perguntar se existem alternativas – até que ponto existem escolhas que a humanidade pode fazer, através de regimes de fogo alternativos, por exemplo.

A maior parte do conteúdo do currículo já estabelecido poderia decorrer desta questão. Tem mais a ver com reorganizar do que descartar. Por exemplo, as estruturas dos ecossistemas terrestres começam a partir da área foliar por unidade de área terrestre que pode ser sustentada pelo fluxo de transpiração. A área foliar, por sua vez, impulsiona a corrida pela altura que dá origem à estrutura da vegetação, que é o habitat dos demais moradores. Surge então a pergunta: “por que o mundo é verde?”. Outra pergunta: por que geralmente há (em terra) muita folhagem, em vez de muitos herbívoros perseguindo restos de folhagem? E depois seguiríamos para a competição: na maioria dos ambientes, uma grande proporção de espécies que poderiam potencialmente ocorrer no local são, na verdade, excluídas pela competição. Os limites para a distribuição das espécies são produzidos pela exclusão competitiva, bem como pela tolerância física. A importância dos experimentos de transplante. E depois os regimes de incêndios e outros regimes de perturbação, a visão em mosaico de paisagens e paisagens costeiras, e como as populações são sustentadas em paisagens sucessivas. Claro, este é apenas um breve esboço. Muito mais decisões precisariam ser tomadas e os julgamentos por trás delas, debatidos.

Uma razão para reformular nosso currículo, começando pelas estruturas dos ecossistemas, é que as questões sejam imediatamente reconhecidas como importantes pelos estudantes que ainda não decidiram se querem se tornar ecólogos. O padrão em escala mundial dos tipos de ecossistemas – em terra, as zonas de Humboldt e Hudson – é algo que os não-ecólogos certamente esperam que a Ecologia seja capaz de explicar. Além disso, queremos que os estudantes vejam a Ecologia como uma ciência que pode realizar coisas novas, e não apenas reclamar sobre como a natureza está sendo destruída pelos humanos. O que seria possível com (digamos) 800 ppm de CO2, com uma temperatura média anual de 28 °C e uma precipitação fortemente sazonal de 1.500 mm por ano? Se instalarmos jangadas em mar aberto juntamente com bombas movidas a energia solar para trazer água rica em nutrientes para a superfície, será que florestas de algas poderiam ser sustentadas? Ou como um ecossistema poderia ser projetado para operar em uma estação espacial?

Outra razão para uma nova sequência é que, embora na década de 1970 o programa de construção progressiva indo desde interações entre pares de populações até redes de interação e ecossistemas inteiros parecesse um caminho promissor para o futuro, ele na verdade não funcionou muito bem para muitos tipos de comunidades. As partes do currículo sobre metabolismo ecossistêmico e interação populacional permaneceram em grande parte desconectadas. Seria bom nos convencermos de que eles realmente pertencem a uma única disciplina.

Qual poderia ser o processo para desenvolver um novo currículo de Introdução à Ecologia? O primeiro passo seria verificar se é possível chegar a algum acordo sobre uma sequência curricular. Nem todo mundo precisa concordar. Mas é necessário que haja pessoas suficientes para formar uma equipe eficaz e apoio suficiente para acreditar que o novo currículo poderia ser amplamente adotado. Idealmente, essa discussão aconteceria através de grupos de trabalho. O Zoom também oferece algumas possibilidades.

Em segundo lugar, teríamos que encontrar as pessoas certas para redigir cada módulo. Terceiro, teríamos que nos organizar para colocá-lo online, juntamente com gráficos, etc. E quarto, seria preciso um processo contínuo de enriquecimento com exercícios numéricos, expedições de campo em vídeo a experimentos famosos e debates sobre questões. Para esta quarta fase já existe muito material. A maioria das sociedades ecológicas nacionais já tem um comitê de educação ou similar que está ativo no compartilhamento de ideias e materiais sobre como ensinar tópicos específicos.

Um currículo online CORE-Ecol seria um bem público. A autoria seria diluída. Ele não promoveria as carreiras das pessoas da mesma forma que a publicação dos seus próprios artigos ou livros-texto. Isso seria um problema? Estariam os pensadores e escritores mais brilhantes dispostos a dedicar tempo a isso? Espero que sim, porque muitos ecólogos têm notável espírito público. Mas não tenho certeza.

Então, para recapitular: a proposta é que ecólogos de todo o mundo se organizem para desenvolver um novo currículo de Introdução à Ecologia, disponível gratuitamente online e de propriedade coletiva. O que você acha, caro leitor? Por favor, compartilhe seus pensamentos conosco.


Versão original em inglês

Here is a proposition: ecologists round the world should get organised as a community to develop a fresh curriculum-slash-textbook for Introductory Ecology. It should be freely available online, and communally owned. How might the distinguished readers of Sobrevivendo na Ciência feel about this proposition?

There is a model and an inspiration for such a project in CORE-Econ, a communal curriculum (and downloadable textbook) for Intro Economics. CORE-Econ launched in 2013 and is already in use by 400-odd universities round the world. Please do look at the CORE-Econ website, to see the worldview and the wealth of resources it offers. Although the materials of CORE-Econ are online, their aim is to support face-to-face teaching, not to replace face-to-face teaching with an online equivalent.

One motivation for assembling a CORE-Ecol is practical benefits. It can be free to students as well as lecturers. It can draw on the creativity of thousands of people teaching Intro Ecology round the world. It can become really international, not constrained by the experience of 2-3 authors. The online format can easily accommodate case studies and debates as well as principles.

The other motivation is the question of refreshing the curriculum. That’s what most motivates me. Curriculum ought to evolve reciprocally with research agendas. Curricula can only become widely adopted if researchers feel they tackle the right questions. But also, if they succeed in jumping a bit ahead of current research fashions, they have potential to shape the next generation’s thinking about which research questions are most important, and about the overall scope of ecology.

Ecology changed a lot during the 1950s-1960s. Many of those changes were crystallized in widely-adopted textbooks from Krebs (first edition 1972), Ricklefs (first edition 1973) and Begon-Harper-Townsend (first edition 1983). These have been through multiple editions over the ensuing 50 years, have spun off shorter versions, and are still in use. They have a similar sequence. They begin with individuals and how they cope or fail to cope with the physical environment, then population dynamics, then pairwise population interactions (competition, predation, parasitism, mutualism), then “communities” meaning multispecies networks of population interactions, then “ecosystems” meaning communities from perspective of energy flow and nutrient cycles. Title of Begon-Harper-Townsend reflects this sequence, it started out as: “Ecology: Individuals, Populations and Communities” and later adjusted to “Ecology: Individuals to Ecosystems”. I’m pretty sure this sequence is still prevalent, though I don’t have a survey to prove it.

I would like to see a fresh curriculum that begins from the question, given a location in physical geography – temperature, rainfall, light, regolith, upwelling, wave action — what ecosystem structure can potentially emerge? By ecosystem structure I mean especially foundation species that structure the habitat – trees and their litter, coral, mussel beds – and where the main energy and nutrient flows come from and go to. In parallel with asking what structures are possible, it’s important to ask whether there are alternatives – to what extent there are choices humanity can make, via alternative fire regimes for example.

Most content in the established curriculum can flow on from this question. It’s a matter of rearranging more so than discarding. For example, ecosystem structures on land begin from the leaf area per unit ground area that can be supported by the transpiration stream. Leaf area in turn drives the race for height that gives rise to vegetation structure, which is habitat for the other residents. Then arises the “why is the world green?” question – why is there usually (on land) plenty of foliage, rather than plenty of herbivores chasing scraps of foliage? And then competition: in most settings, a large proportion of species that could potentially occur at the site are actually excluded by competition. Boundaries to species distributions are produced by competitive exclusion as well as by physical tolerance. The importance of transplant experiments. And then fire regimes and other disturbance regimes, the patch-mosaic view of landscapes and coastscapes, and how populations are sustained in successional landscapes. Of course, this is only the briefest sketch. Lots more decisions need to be made, and the judgments behind them debated.

One reason for reframing the curriculum to begin from ecosystem structures is for the questions to be immediately recognizable as important, to students who have not yet decided whether they want to be ecologists. The world-scale pattern of ecosystem types — on land, the zonations of Humboldt and Hudson – is something non-ecologists surely expect ecology to be able to explain. Also, we want students to see ecology as a science that can accomplish new things, not just complain about how nature is being disrupted. What would be possible at (say) 800 ppm CO2, with mean annual temperature 28 oC, and strongly-seasonal rainfall of 1,500 mm pa? If we set up rafts in open ocean along with solar-powered pumps to bring nutrient-rich water to the surface, could kelp forests be sustained? Or how might an ecosystem be designed to operate on a space station?

Another reason for resequencing is that although in the 1970s the program of building up progressively from two-species interactions to interaction networks to whole ecosystems looked an inviting way forward, it has actually not worked out that well for many community-types. The ecosystem-metabolism and the population-interaction parts of the curriculum have remained largely disconnected. It would be good to convince ourselves that they actually belong together within a single discipline.

What might the process be for developing a fresh curriculum for introductory ecology? The first step would be to see whether some agreement can be reached on a curriculum sequence. Not everyone has to agree. But there need to be enough people to make an effective team, and enough support to believe that the new curriculum might be widely adopted. Ideally that discussion would happen via intensive working groups. Zoom also offers some possibilities.

Second, find the right people to first-draft each module. Third, organize to take it online, along with graphics etc. And fourth, a continuing process of enrichment with numerical exercises, video fieldtrips to famous experiments, and debates over issues. For this fourth phase, much material is already in existence. Most national ecological societies already have an education committee or similar that is active with sharing ideas and materials about how to teach particular topics.

A CORE-Ecol online curriculum would be a public good. Authorship would be disseminated. It would not advance people’s careers in the same way as publishing their own research papers or their own textbooks. Would this be a problem? — would the clearest thinkers and writers be willing to spend time on it? I hope so, because many ecologists are notably public-spirited. But I don’t know for sure.

So to recap: the proposition is that ecology academics round the world should get organised as a community to develop a fresh curriculum for introductory ecology, freely available online, and communally owned. What do you think, dear reader? Please share your thoughts with us.

(Fonte da imagem destacada)

4 respostas para “CORE-Ecol: um novo currículo de Ecologia”

  1. Very interesting ideas!

    I don’t yet have an opinion on this structure as opposed to other possible structures, but I think that the proposed question (what ecosystem would occur under certain conditions) is a great starting point. And then, how a certain change in the environment would affect this ecosystem. But these questions are really complex and it will be challenging to decide what to teach (but it’s already challenging, so no big issues here).

    On a related topic, something I’ve been thinking about is how to best divide the subjects when there are, say, three Ecology courses for a given Biology majors. Perhaps currently the division according to hierarchical organization levels – individuals and populations; communities; ecosystems and landscape, or something like this – is common. I wonder if a division by groups (plant ecology and animal ecology) or locations (terrestrial ecology, marine ecology, freshwater ecology) could make more sense, considering how research is usually performed and how some processes are quite different between these groups or environments (but other processes and general concepts like competition, predation etc are similar). Or perhaps some other division. What are your thoughts on this?

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    1. Interesting question, thanks! My own preference would definitely be for an Intro course to make a point of spanning scales and also of drawing material from all environments and all sorts of organisms. If there were multiple courses, then from an intellectual point of view I’d still like to see them integrated across scales and habitats and organisms. But different universities do have different exigencies. For example, it’s quite common for one of the more advanced courses to focus on field experience. Or for a specifically marine ecology course to be needed for purposes of a marine science major.

      Still and all, I’d advocate for the online curriculum material to make a point of drawing examples from many habitats and organisms. The lecturer in charge of a course can then select subsets as they see fit.

      As far as plant vs animal ecology, how about instead comparing sessile, space-occupying ecology with mobile, well-mixed ecology? There was a nice paper about this last year from Urmy et al “When are bacteria really gazelles? Comparing patchy ecologies with dimensionless numbers” https://doi.org/10.1111/ele.13987.

      Curtido por 1 pessoa

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