Por Alexandre Palaoro*
Mais um dia atribulado e a luta continua. Sinto o peso das pálpebras. Tento segurá-las abertas, mas alguma força misteriosa lentamente ganha essa queda de braço. E, quando percebo, minhas pálpebras estão fechadas novamente. Perdi. Apesar de as luzes fluorescentes piscarem incessantemente e o cheiro de naftalina queimar minhas narinas, é como se não fosse eu ali. O meu corpo está ali, mas o que me faz ser “eu”, não. Na minha visão, tudo é um borrão desfocado e oscilante. A grande batalha está sendo travada em alguma outra dimensão. Vontade e pálpebras se digladiam como se estivessem na Roma antiga. Apenas uma sairá vitoriosa. Após um longo suspiro, daqueles vindos do âmago do meu ser, reflito: “eu não deveria ter comido tanto estrogonofe de frango com batata palha no bandejão”. Sorvo o café como minha última esperança de uma tarde produtiva. Abro um artigo que está há meses na área de trabalho. Que venha o próximo round.
Personagens são importantes. Não só para contarmos histórias, mas também para canalizarmos sentimentos. Através de personagens com os quais nos importamos é que rimos, choramos e amamos. Eles conseguem nos explicar inquietações, dúvidas e ideias que muitas vezes são difíceis de expressar sem ajuda. Um exemplo disso é a ficção científica. A ideia por trás dela não é mostrar o espaço, a fronteira final, mas sim questionar a própria condição humana. O filme Blade Runner, dirigido por Ridley Scott em 1982, faz isso com maestria. É através dos replicantes que pensamos sobre o que é “ser”. Um humano criado em laboratório, com implantes de memória, pode ser considerado um ser consciente?
O fantástico desenho Rick & Morty (produzido pelo Adult Swim) faz a mesma coisa. É através do niilismo dos personagens que chegamos à frase icônica “Ninguém existe de propósito. Ninguém pertence a lugar nenhum. Todo mundo vai morrer. Então venha assistir TV” (Fig. 1). Se pensarmos bem, até as histórias para crianças tentam nos ensinar algo através de personagens. O termo cautionary tales vem daí. Ou você acha que o conto “O menino que gritava lobo” não queria ensinar que mentir é ruim através da morte de um personagem?

Mas o que isso tem a ver com escrita científica? Ao meu ver, tudo. Um personagem vai muito além de um humano tomando decisões e agindo. Segundo a Wikipedia, “Personagem é qualquer ser atuante de uma história ou obra.” Por essa definição, uma ideia pode ser o personagem de uma história. Então, porque uma teoria ou as premissas da sua hipótese não poderiam ser tratadas como personagens? Afinal, são elas que movimentam o seu texto. É através delas que você mostra como respondeu a pergunta de trabalho ou explica a motivação que botou o seu estudo em movimento.
“Isso é muito lindo, Alexandre, mas como eu posso botar isso em prática?”
Boa pergunta internauta! Uma boa forma de entender esse processo é utilizando as maravilhas da engenharia reversa. Ela é gratuita, pode ser utilizada em qualquer lugar e é muita poderosa (eu já disse gratuita?). Para facilitar a minha vida, vou utilizar o prólogo deste post como exemplo. Não é um texto científico, óbvio, mas serve como exercício. Nele, eu conto algumas abobrinhas sobre sono pós-almoço (a.k.a. lombeira), algo que frequentemente domina a minha vida. Eu poderia ter dito “Eu fico sonolento depois do almoço”. Você responderia: “<sarcasmo> nossa, como você é especial </sarcasmo>”. Ao invés disso, eu usei esse tipo especial de sono como personagem para gerar interesse.
Eu começo com a motivação da história: “Mais um dia atribulado e a luta continua” e passo rapidamente para o personagem: “Sinto o peso das pálpebras.” Notem que não usei a palavra sono, mas descrevi uma característica dele.
Eu sigo a caracterização do personagem (neste caso, o vilão). Quero aumentar as dimensões desse personagem, dar uma ideia para o leitor de como ele influencia a motivação: “Tento segurá-las abertas, mas alguma força misteriosa lentamente ganha essa queda de braço. E, quando percebo, minhas pálpebras estão fechadas novamente; perdi.”
Eu dei ao personagem um universo: “Apesar de as luzes fluorescentes piscarem incessantemente e o cheiro de naftalina queimar minhas narinas”. Pela descrição, vocês podem estar imaginando algum tipo de escritório, local no qual luzes fluorescentes são comuns. A naftalina é para dar a impressão de que o local é velho.
A seguir, começo com as regras do universo criado: “[…] é como se não fosse eu ali. O meu corpo está ali, mas o que me faz ser “eu”, não. Na minha visão, tudo é um borrão desfocado e oscilante. A grande batalha está sendo travada em alguma outra dimensão. Vontade e pálpebras se digladiam como se estivessem na Roma antiga. Apenas uma sairá vitoriosa.” Eu dei uma bela floreada no texto (digladiam, Roma antiga etc.) para, usando metáforas do dia-a-dia, dar impacto às regras.
Depois disso, termino com a resolução da luta. Dou um suspiro e que venha o próximo round. Como a luta acontece sempre nesse universo, optei por não ter um fim da luta. A luta acontece diariamente, então você poderia vir amanhã e ler de novo (em loop) se quisesse.
Essa é uma das formas que se aproxima da escrita clássica que Steven Pinker descreve em seu ótimo livro “The Sense of Style” (publicado em português como Guia de Escrita). É uma forma de eficaz de contar histórias e prender o leitor, mas está longe de ser a única ou mesmo unânime. Porém, ela pode ser muito útil para nós, cientistas.
Na próxima vez que você for apresentar alguma ideia por escrito e estiver com dificuldades, considere a possibilidade de estruturar a sua narrativa da seguinte forma:
Motivação -> Personagem -> Regras -> Resolução
Motivação: A sua pergunta. O que te motivou a fazer esse trabalho? É ela que você tem que usar para engajar o leitor. Por exemplo: a cor dos indivíduos da espécie X é uma camuflagem?
Personagem: As premissas da sua hipótese. Como elas se conectam à pergunta? Lembre-se sempre de caracterizar o seu personagem. Sem caracterização, eu não tenho como me importar com ele. O que é camuflagem?
Regras: Como é o universo em questão e como o seu personagem age dentro dele. Como a camuflagem pode influenciar a seleção natural?
Resolução: A sua hipótese e as predições derivadas dela. Se for mesmo camuflagem o fenômeno que estou estudando, espero observar Y.
Em suma, envolva o leitor com as suas ideias. Utilize personagens, descrições de universos com regras. Explique-me como é o universo da sua história e como o seu personagem age dentro dele, que eu ficarei curioso sobre o que virá a seguir.
Conte-me uma história.
* Texto escrito a convite. O autor é postdoc do Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo. Pretendo convidar cada vez mais colegas para escrever aqui no blog. Acho que isso ajudará a oxigenar este espaço, apresentando a você, leitor(a), outras visões além da minha.
Legal! Tem um texto parecido no Dynamic Ecology, falando pra estruturar texto científico como texto de ficção…
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Verdade Pavel. Esqueci de citar no texto, mas lá no dynamicecology.wordpress.com eles tem posts excelentes sobre escrita (em quase todos os níveis também).
Tem um post do Hendry Bolnick que eu também acho fantástico. Até o esquema em que ele pensa é uma história.
Caso tu não tenha visto, tá aí o link:
http://ecoevoevoeco.blogspot.com.br/2014/10/how-to-writepresent-science-baby.html?m=1
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Bacana! O nome disso é Storytelling! Há vários cursos online =)
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É isso mesmo Suellen!
Se você souber se algum curso legal, poderia colar o link aqui? Pode ser útil para quem queira se aprofundar mais nisso.
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