O que é um professor universitário?

No Brasil, é comum ouvir tolices como “O Prof. Fulano reclama de dar aulas demais, mas o cargo dele é de professor, né?”. Ou seja, há muita confusão sobre quais seriam as reais atribuições de um professor universitário. Como esse é o cargo mais importante na carreira acadêmica, vale a pena dedicar um post inteiro a esclarecer essa questão.


É claro que, na prática, o que cada professor faz no dia a dia varia muito entre universidades. Na verdade, há uma enorme variação até entre professores de uma mesma universidade. As atribuições também vão mudando, conforme se progride verticalmente na carreira: substituto > visitante > assistente > adjunto > associado > titular > emérito. Aqui vou focar no sentido maior do cargo.

Em outros idiomas e culturas, a diferença entre um professor universitário e outros tipos de professor fica clara já no vocabulário. Por exemplo, no inglês, o termo professor se aplica apenas ao professor universitário, enquanto teacher é o professor de escola e lecturer é o docente universitário, geralmente com doutorado, mas sem título de professor. 

No alemão, também se diferencia o professor universitário através do termo Professor, enquanto quem dá aulas em escolas é um Lehrer e quem dá aulas na universidade sem ter o título de professor é um Dozent. No japonês, essa mesma diferença é marcada nas palavras sensei (先生), kooshi (講師) e kyooju (教授).

Sim, em outros países, professor, mais do que um cargo, é um título. Além disso, em outros países há concursos de habilitação, também conhecidos como livre-docência no estado de SP, através dos quais se confere títulos formais de professor independente, habilitado a ser responsável por disciplinas no ensino superior.

Não é uma questão de qual tipo de professor é melhor do que o outro

Cada professor tem o seu papel no sistema educacional e todos são importantes.

É apenas uma questão de diferenciar as carreiras e títulos, para se definir claramente o que se espera de cada professor.

Ok, então o que diferenciaria o professor universitário dos outros? Simples: esse cargo foi inventado para ser ocupado por profissionais que associam pesquisa e ensino. Sim, essas duas atividades são indissociáveis no conceito original de professor universitário.

“Mas, Marco, então pesquisa e ensino são indissociáveis?”

Sim, porque espera-se que um professor universitário trabalhe tanto transmitindo, quanto produzindo conhecimento. Espera-se que ele esteja sempre na vanguarda da sua área e que atue também prestando serviços diretos à sociedade, sendo o principal deles a formação de profissionais de nível superior.

Alerta 1: digo pesquisa, aqui neste texto, no sentido de investigação científica. Não estou me referindo à pesquisa no sentido popular, que abarca desde a leitura de um verbete de uma enciclopédia para fazer o dever de casa até um tratado informal sobre um determinado assunto. No sentido acadêmico, pesquisa é uma atividade feita para gerar conhecimento novo usando o método científico.

Além do ensino e da pesquisa, vale lembrar que a extensão também faz parte dos…

Pilares do ensino superior

Eles constam na nossa constituição de 1988 (Capítulo III, Seção I, Artigo 207):

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996)

§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996)

Voltando ao ponto

Para se formar em uma profissão de nível superior, o aluno tem que ser apresentado tanto aos fundamentos quanto à vanguarda. Acima de tudo, espera-se que um professor universitário produza ele mesmo algumas novidades. Sim, um professor universitário tem a obrigação não apenas de transmitir, mas também de produzir conhecimento.

E a transmissão de conhecimento se dá principalmente em sala de aula, passando informações  consolidadas para os aspiras. Ela também ocorre através da divulgação ao mundo de descobertas científicas por meio de artigos publicados em revistas indexadas e revisadas pelos pares. Uma outra forma crucial de transmissão de conhecimento é feita por quem compartilha o conhecimento estabelecido com o público leigo de diferentes formas (divulgação científica, consultoria, assessoria, prestação de serviços etc.).

“Mas, Marco, em teoria, então um professor universitário tem que fazer pesquisa também?”

Sim! Ninguém se atualiza tanto em uma área, quanto alguém que precisa disso para fazer as próprias pesquisas, porque ama a ciência. O mesmo vale para os colegas que optam por focar na extensão ao invés da pesquisa, priorizando o contato direto com a sociedade.

Contudo, no Brasil espera-se que o professor universitário seja uma espécie de faz-tudo, tendo que desempenhar até mesmo funções para as quais não tem o mínimo preparo, como gerenciamento de recursos humanos e contabilidade.

Alerta 2: o que explico neste texto é o sentido maior do cargo de professor universitário, com um foco nas universidades públicas. E também considerando as particulares que seguem o mesmo modelo acadêmico. Se a sua instituição faz cobranças radicalmente diferentes do que apresento aqui, desconfie. Não quer dizer que você não seja um professor universitário de verdade. Quer dizer apenas que a sua instituição te desvia da função original.

And the plot thickens

A Constituição fala apenas em três pilares de atuação, no nível das instituições. Contudo, de acordo com as leis federais e também com algumas estaduais, a carreia de professor universitário, no nível individual, envolve, via de regra, cinco pilares:

  1. Ensino: coordenação e participação em disciplinas de graduação e pós-graduação, presenciais ou à distância.
  2. Pesquisa: investigação científica ou tecnológica para produção de conhecimento. Na verdade, a área da pesquisa envolve mais um monte de coisas além da investigação e publicação, como revisão de artigos, editoração de revistas científicas, organização de congressos, administração de sociedades científicas, assessoria ad hoc para agências de fomento e muito mais.
  3. Extensão: assessoria e divulgação de conhecimento científico e técnico para o público externo à universidade através de assessoria, consultoria, palestras, cursos, exposições em museus, publicações e muito mais. Extensão é algo muito amplo, que engloba desde publicar matérias em jornais e revistas, até dar assessoria técnica em audiências públicas e fazer consultoria para empresas ou governos. Mais um excelente exemplo de extensão é o atendimento médico, odontológico, veterinário e jurídico prestado de graça à população em muitas universidades. Isso sem contar os museus, uma das mais belas formas de extensão. Na verdade, a nossa participação em sociedades científicas também é classificada como extensão em algumas universidades, pois essas sociedades fazem o meio de campo entre academia e sociedade. Algumas, como a SBPC, funcionam como think thanks brasileiros.
  4. Orientação: formação de novos profissionais da pesquisa, ensino ou extensão através de estágios e projetos orientados de iniciação científica júnior, iniciação científica, TCC, mestrado, doutorado, pós-doutorado e outras formas de mentoria.
  5. Gestão: também conhecida como administração, envolve serviços prestados à universidade, que visam manter a sua infraestrutura e funcionamento, assim como administração do próprio grupo de pesquisa. Engloba cargos de chefia em geral, assentos em órgãos colegiados da universidade (câmaras, colegiados, conselhos e congregações), gerenciamento de projetos, captação de verbas externas, contabilidade, direção de laboratórios, etc.

A constituição determina que pesquisa, ensino e extensão devem ser indissociáveis nas universidades. Contudo, isso é previsto em nível institucional, não individual. Dependendo da universidade e do seu regimento interno, espera-se que o professor se envolva com no mínimo dois ou três desses pilares. Alguns acabam se envolvendo com todos.

O único pilar obrigatório é o ensino. Só fica desobrigado parcial ou totalmente de dar aulas quem ocupa altos cargos administrativos, como chefe de departamento, diretor de instituto, pró-reitor ou reitor. Significa que, contratualmente no Brasil, nem todo professor universitário é obrigado a fazer pesquisa ou extensão, e alguns ficam temporariamente desobrigados de dar aulas. E, na prática, todos são pressionados pelos colegas a ocupar cargos administrativos, pelo menos de vez em quando.

Vamos destrinchar um exemplo concreto

Como isso funciona nas universidades federais brasileiras? De acordo com a lei que rege essas instituições, o professor universitário “padrão” (sem cargo de chefia ou outras condicionantes) é obrigado a dar de 8 a 12 créditos por semestre. Cada crédito representa 15 h em sala de aula. Ou seja, o sujeito é obrigado a passar dentro de sala entre 120 e 180 h por semestre.

Só que essa é apenas a carga dentro de sala. Um professor veterano dedicado, que de fato gasta tempo e energia com as aulas, sempre investindo na atualização do conteúdo a cada edição de cada disciplina, precisa de no mínimo 2 h de preparação (slides, leituras, material biológico para aulas práticas, preparação de computadores etc.) para cada 1 h em sala. Se o professor é um novato, dando aquela disciplina pela primeira vez, só a preparação das aulas teóricas pode chegar a uma proporção horária de 1:10 (sala:preparação).

Para fazer um cálculo concreto de horas, vamos considerar que uma disciplina obrigatória de graduação típica tem 4 créditos (60 h) e costuma ser organizada de forma a ocupar 4 h em sala por semana, sendo ministrada por um professor veterano. Logo, das 40 h de trabalho semanais determinadas por lei, o professor acaba passando no mínimo 4 h envolvido com a disciplina em sala. Isso, fora as horas gastas com a atualização das aulas teóricas e práticas, além de atendimento de alunos e correção de trabalhos e provas. Assim, a conta pode facilmente chegar a 12 h por semana ocupadas com cada disciplina em cada semestre. Como o contrato federal obriga os professores a darem no mínimo 8 créditos por semestre, ou seja, duas disciplinas obrigatórias, estamos falando de um tempo mínimo de 24 h por semana focadas no ensino. Ou 360 h por semestre, em um semestre padrão com 15 semanas letivas. No caso das disciplinas de pôs-graduação, essas horas podem ser condensadas na forma de disciplinas intensivas, ministradas das 9:00 às 17:00 (por exemplo), em seis ou mais dias.

Isso, porque 8 créditos são o mínimo. É comum em várias universidades os professores novatos serem explorados pelos colegas veteranos, que acabam jogando sobre seus ombros uma parte da carga que caberia a eles mesmos. Assim, não é difícil encontrar por aí professores federais em estágio probatório com cargas de 12 créditos ou mais, apesar de esse ser o teto legal.

Para se ocupar com um mínimo de 2 disciplinas de 4 créditos por semestre, totalizando 8 créditos, e realmente ministrá-las com qualidade, atualizando cada disciplina a cada edição e dando toda a atenção que os alunos demandam fora de sala, o professor universitário não poderia se envolver com mais nada!

Você ainda acha que professor universitário é vagabundo?

Você pensa isso, porque um professor “só” precisa dar 8 h em sala por semana? Então volte ao início e comece a ler este texto novamente.

Como dito, essas 8h, na prática, se convertem no mínimo em 24h. A única forma de aliviar essa carga gigante é através de ajuda formal ou informal. Por exemplo, ajuda de pós-doutores ou pós-graduandos que atuam como tutores e de graduandos que atuam como monitores em disciplinas. Em algumas universidades, há também um esquema de duplicação de créditos permitida pelos colegiados de alguns cursos. Isso faz com que dois professores dividam uma disciplina de 4 créditos, com cada um recebendo 4 créditos, e não 2. Mas, dentro de uma mesma universidade, não é todo curso que permite isso.

Para piorar nem todo professor ou toda disciplina contam com o apoio de auxiliares. Os tutores remunerados conhecidos internacionalmente como “TAs” (teaching assistants), comuns nos EUA, Alemanha, França e UK, chegaram a ter uma versão brasileira temporária durante o Reuni. Só que o programa foi planejado para durar apenas cinco anos. Só para variar, nada é pensado a longo prazo neste país, tudo é jeitinho.

Como alguém pode se dedicar de verdade à pesquisa de ponta tendo sobre os ombros uma carga didática massacrante como essa? Como alguém pode fazer extensão e atender de outras formas a sociedade, se é obrigado a dar aulas igual a um burro de carga? Na verdade, como seria possível conciliar qualquer um dos outros quatro pilares da carreira com essa carga didática absurda?

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência com pesquisa cientifica séria, de qualidade internacional, sabe que não dá para se dedicar a fazer descobertas relevantes e se manter na vanguarda da área, contando apenas com esse tempo que sobra. Ou seja, 16 horas por semana, sem contar o cansaço gerado pelas atividades de ensino, que demandam, além de tempo, muita energia. Isso, se o professor não estiver, ainda por cima, com algum cargo de vice-chefia ou assento em algum órgão colegiado, que via de regra não geram minimização de carga didática, nem remuneração extra.

Essa carga didática massacrante tem uma origem

Somos uma geração de professores treinados no século XX, usando métodos do século XIX, encarregados de dar aulas para alunos que nasceram no século XXI.

O Brasil tem um verdadeiro fetiche pelo cuspe-e-giz! Em universidades de ponta pelo mundo, a carga semestral obrigatória de um professor não ultrapassa 4 créditos. Professores e alunos passam muito menos tempo em sala, justamente porque se dá mais valor à independência dos aspiras. O bom aluno do ensino superior em países líderes da ciência gasta a maior parte do seu tempo estudando por conta própria, sozinho ou em grupo, através de tarefas orientadas ou leitura espontânea. O momento em sala com o professor na aula teórica (lecture, Vorlesung ou kogi/講義) serve para apresentar ou consolidar o conteúdo principal, receber orientações, tirar dúvidas e passar tarefas.

No Brasil, castramos a individualidade, a criatividade, a autonomia, a iniciativa e o livre pensamento, porque insistimos em adestrar os alunos em cativeiro.

Ok, estou divagando. Voltando ao ponto de vista do professor, dá para entender porque nunca chegaremos ao mesmo nível de qualidade em ensino e pesquisa do primeiro mundo? Ficou claro porque estamos fadados a enxugar gelo e ficar sempre dois passos atrás dos nossos colegas mais sortudos, que nasceram nos países líderes da ciência e da educação?

Por favor, nunca mais diga que um professor universitário brasileiro não pode reclamar de dar aulas demais, porque “tem cargo de professor”. Isso é tão estúpido quanto dizer que um professor universitário que tem bolsa de produtividade está desrespeitando a dedicação exclusiva, porque é também “pesquisador do CNPq”.

“Mas, Marco, você não vai propor nenhuma solução, só vai reclamar?”

Já propus uma solução, na qual acredito piamente, em outro texto. Resumidamente, acho que a carreira universitária deveria ter mais subdivisões.

Todos conhecem professores universitários que são excelentes cientistas, mas péssimos docentes. Há também os que dão aulas maravilhosas, mas não tem gosto pela pesquisa científica. E não podemos nos esquecer daqueles que fazem pesquisa morna e ensino morno, mas são gestores natos, sempre colocando ordem na casa, quando pegam cargos de chefia. Há ainda os colegas que sabem se comunicar com maestria com o público leigo, realizando projetos de extensão de grande impacto na sociedade, mas não manjam tanto de pesquisa ou administração.

Por que não criamos carreiras separadas para cada um desses talentos, fazendo com que cada pessoa se especialize no que faz melhor e seja cobrada apenas por isso? O cargo de professor poderia ser reservado aos poucos que conseguem fazer bem todas essas coisas, enquanto a maioria seria contratada como pesquisador, docente, administrador ou divulgador de ciência, por exemplo. Orientação todos nós fazemos no final das contas, cuidando de pupilos em cada um desses ramos. Essa estrutura de carreira é usada no Reino Unido e outros países com muito sucesso, pois valoriza o que cada um tem de melhor e promove um sistema diverso.

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  5. What if we make a class better for student learning but unsustainable for faculty?

Alerta 3: atualizei este texto maciçamente em 31 de agosto de 2017, a fim de torná-lo mais claro e incluir algumas informações importantes que talvez não fossem óbvias para quem é de fora da Academia. Desde então, tenho atualizado-o regularmente.

Fonte da imagem destacada.

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