Desconfiar x confiar: por que investir no ensino de ciências por investigação?

Em tempos de fake news, nada é mais importante do que ensinar as pessoas a avaliar a qualidade de uma informação. Neste texto escrito a convite aqui para o blog, a Profa. Scarpa nos apresenta o conceito de ensino por investigação, que pode nos ajudar a formar novas gerações mais bem preparadas para lidar com as montanhas de dados do mundo contemporâneo.

Por Daniela Lopes Scarpa

Professora Doutora do Departamento de Ecologia, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo. 

O conhecimento tem crescido exponencialmente. Tem sido difícil para a mídia, para a escola e para todos nós identificar, selecionar e sintetizar as informações relevantes. E separar o joio do trigo é fundamental para que possamos tomar decisões e nos posicionar perante os mais diversos assuntos. Como distinguir fato de fake? Como decidir desconfiar ou confiar nas informações que chegam a nós?

Não se trata somente de emitir opiniões. “Eu acho que não devo vacinar meus filhos” ou “sou a favor do armamento da população”. Em uma conversa racional, o comportamento esperado é que sejam oferecidas razões que sustentem essas afirmações. Com isso, a discussão pode continuar de maneira pacífica, colocando-se em jogo as justificativas de porque essas são boas razões ou não, se há alternativas e se elas são suficientes para sustentar ou refutar as afirmações. Os participantes da discussão podem, então, chegar a um acordo ao aceitarem as razões como boas para sustentar as afirmações. Ou podem discordar, de maneira respeitosa, ao apresentarem razões alternativas que levem a outras conclusões.

O problema tem sido, justamente, conseguir elementos para avaliar as razões que sustentam as afirmações. Se a afirmação for baseada em outra opinião ou se o debate for baseado exclusivamente em emoções, os posicionamentos se tornam frágeis. E é aí que a ciência pode ajudar. As ciências naturais possuem ferramentas para produzir conhecimento e gerar afirmações sobre o mundo. Essas ferramentas permitem também justificar, avaliar e legitimar essas afirmações por meio de práticas específicas. O conhecimento dessas práticas pode contribuir para as pessoas se engajarem em discussões fundamentadas e racionais.

No exemplo das vacinas, a diminuição no número de crianças vacinadas tem resultado em um aumento nos casos de doenças contagiosas no país, como o sarampo. Não se sabe ainda exatamente as causas dessa diminuição, mas é muito provável que as pessoas tenham começado a questionar a eficácia das vacinas por conta da divulgação de um estudo realizado em 1998. Esse estudo relacionava a vacinação com casos de autismos em crianças. Mesmo que, mais tarde, tenha se reconhecido fraude na realização da pesquisa e o artigo tenha sido “despublicado”, grupos se organizaram em redes sociais se opondo à imunização com base em fake news. Outro fator que pode explicar a redução na taxa de cobertura vacinal nos últimos anos é a percepção de gerações mais jovens, que nunca conviveram com doenças como a poliomielite, de que essas doenças não existem mais e a imunização não seria então mais necessária.

No entanto, considerando as informações sobre o papel das vacinas na erradicação de doenças, como a febre amarela urbana, a varíola ou a pólio, e sobre a drástica redução da circulação de determinados vírus na sociedade, nos causa estranheza essa desconfiança. Por que as pessoas deixaram de confiar em um procedimento de grande sucesso na preservação da vida humana, resultante de um processo rigoroso de produção de conhecimento científico sobre o funcionamento do nosso organismo e sua interação com microrganismos?

Se tivéssemos a oportunidade de vivenciar experiências investigativas desde a mais tenra idade, talvez aprendêssemos a desconfiar das afirmações exageradas e sem fundamento. Não engoliríamos tão facilmente as famigeradas fake news e buscaríamos fontes confiáveis para tomar nossas decisões. O ensino de ciências por investigação propõe exatamente que sejam oferecidos aos estudantes do ensino básico ambientes de aprendizagem em que possam desenvolver uma postura investigativa perante o mundo.

“As vacinas causam reações adversas” poderia ser uma afirmação que levasse alguém a não vacinar mais os filhos. Mas essa pessoa poderia se questionar: será mesmo? Em que casos? Com que frequência? Sob quais condições? Que outras informações eu deveria procurar para julgar essa afirmação? A busca por respostas a perguntas como essas ajudam a elencar razões para validar ou não essa afirmação. Na ciência, é isso o que acontece: a partir de questões de investigação, os pesquisadores imaginam formas de respondê-las que irão fornecer dados que servirão para construir as explicações para o fenômeno investigado.

Ainda como parte dos procedimentos científicos, os pesquisadores devem considerar pontos como: “como esses dados foram coletados?”, “esses procedimentos seguiram padrões de rigor na sua execução?”, “esses dados são representativos?”, “esses dados podem ser generalizados?”, “como outros grupos de cientistas avaliam esses dados e conclusões?”, “há explicações alternativas?”. Ao ter esses cuidados, é possível analisar se podemos confiar nas evidências apresentadas para elaborar as explicações e sustentar determinadas conclusões. Um caso de autismo em uma criança não é suficiente para sustentar uma relação causal entre vacinação e autismo.

Todo dia surge uma infinidade de dúvidas na mídia tradicional, na internet e em conversas do nosso cotidiano. Ovo faz mal ou bem? Devo tomar muito ou pouco café? Plantações transgênicas afetam o ambiente ou não? Para responder essas perguntas, temos que entender como cada informação foi produzida na ciência e, para isso, temos que vivenciar o processo. Ou seja, precisamos nós mesmos produzir perguntas a respostas científicas para entender como funciona o método de basear afirmações em evidências. Só assim é possível compreender como, em procedimentos científicos, dados são coletados, muitas vezes em uma amostra e contextos específicos, e podem ser transformados em evidências, onde alguma teoria ajuda a explicar esses dados. Graças a essa articulação, então podem ser feitas generalizações que nos ajudam a tomar decisões sobre os mais diversos assuntos.

Ao vivenciarmos esse processo, temos maior habilidade para avaliar as afirmações que nos chegam e tomar decisões ou assumir posicionamentos tanto no campo individual quanto coletivo. É nisso que se baseia o ensino por investigação: tentar trazer, ao longo da escolarização, essas experiências e reflexões sobre como as afirmações científicas são produzidas. Ao vivenciar e refletir sobre o processo de investigação científica, em que a coleta, a análise e a interpretação de dados são condições para se responder a questões de pesquisa, os estudantes têm a oportunidade de aprender o que são as ciências e como elas funcionam, ao mesmo tempo em que desenvolvem habilidades de pensamento crítico, aprendendo a desconfiar para então poder confiar.

Sugestões de leitura:

  1. SCARPA, D. L.; SASSERON, L.H.; Silva, M.B. O Ensino por Investigação e a Argumentação em Aulas de Ciências Naturais. Tópicos Educacionais, v. 23, p. 7-27, 2017. https://periodicos.ufpe.br/revistas/topicoseducacionais/article/view/230486
  2. CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. (Org.). Ensino de Ciências por investigação: condições para implementação em sala de aula. 1ed. São Paulo: Cengage Learning, 2013.
  3. CASTELAR, S.M.V.; GERALDI, A. M.; SCARPA, D. L. Metodologias ativas: ensino por investigação. São Paulo: FDT, 2016. https://drive.google.com/file/d/0BysDa1jVOhYnMVFXd1BRRGkwS0k/view
  4. CAMPOS, NATÁLIA FERREIRA; SCARPA, DANIELA LOPES. Que desafios e Possibilidades Expressam os Licenciandos que Começam a Aprender sobre Ensino de Ciências por Investigação? Tensões entre Visões de Ensino Centradas no Professor e no Estudante. REVISTA BRASILEIRA DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, v. 18, p. 727-759, 2018. http://dx.doi.org/10.28976/1984-2686rbpec2018182727
  5. AZEVEDO, N. H.; SCARPA, D. L. Um levantamento em larga escala das concepções de natureza da ciência de graduandos de biologia brasileiros e os possíveis elementos formativos associados. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências (Belo Horizonte), Belo Horizonte, v. 19, e2794, 2017. http://www.scielo.br/pdf/epec/v19/1983-2117-epec-19-e2794.pdf
  6. CARDOSO, M.J.C.; SCARPA, D.L. Diagnóstico de Elementos do Ensino de Ciências por Investigação (DEEnCI): Uma ferramenta de análise de propostas de ensino investigativas. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 2018 (no prelo).
  7. SCARPA, D.L.; CAMPOS, N.F. O Ensino de Biologia e a Alfabetização Científica: potencialidades do ensino por investigação. Revista Estudos Avançados, 2018 (no prelo).
  8. Aulas da UNIVESP sobre ensino por investigação, dadas na disciplina “Planejamento no Ensino de Biologia” do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas:

 

(Fonte da imagem destacada)