A ciência básica é a base!

Inspirado por um artigo que saiu esta semana, resolvi fazer aqui uma defesa da ciência básica. Virou moda hoje em dia dizer que “toda pesquisa deve ter uma aplicação, senão é desperdício de dinheiro público”. Essa é uma enorme bobagem e eu vou mostrar porquê.

O que é ciência, afinal?*

*Como diria o Chalmers.

Vamos começar pelo básico: o que é a ciência? Essa é uma pergunta mais complexa do que parece e você vai encontrar mais de uma definição em diferentes fontes. Indo à raiz da questão, a ciência é uma cultura humana, assim como várias outras.

Sendo mais específico, ela é uma das grandes culturas humanas transnacionais e transtemporais que visam entender o mundo, o nosso lugar nele e nos ajudar a superar limites. Nessa mesma categoria podemos incluir a filosofia, a religião, a arte e o esporte.

Ciência e filosofia são culturas muito próximas e a diferença entre elas é que a filosofia almeja entender o mundo através apenas do raciocínio lógico, enquanto a ciência visa entender o mundo contrastando o que você espera por lógica contra o que você observa de fato no mundo real. Pode-se dizer que a filosofia é a mãe da ciência, por ser mais antiga e lhe fornecer suas principais ferramentas de pensamento.

Os cinco tipos de ciência

Partindo do princípio de que a ciência é uma cultura preocupada em entender o mundo através da comparação entre expectativa e realidade, vale dizer que isso pode ser feito de diferentes formas e com diferentes objetivos. É aí que podemos subdividir a ciência de acordo com a finalidade de cada pesquisa: ciência básica, ciência aplicada, ciência translacional, ciência de desenvolvimento e ciência estratégica.

A ciência básica se preocupa em responder perguntas que nascem puramente da curiosidade de um cientista sobre como o mundo funciona. A ciência aplicada visa responder perguntas específicas sobre a aplicação do conhecimento científico, normalmente com a intenção de gerar tecnologia em um sentido amplo (desde medicamentos até televisores e métodos de ensino).

A ciência translacional visa ajudar a criar pontes entre a básica e a aplicada, de forma a facilitar a criação de tecnologia. A ciência de desenvolvimento visa desenvolver produtos a partir de aplicações recém-descobertas. E, por fim, a ciência estratégica visa criar a base operacional e de negócios para usar o conhecimento científico a fim de resolver uma meta aplicada, confundindo-se em grande parte com a ciência de desenvolvimento.

A ciência básica é mal compreendida

A ciência básica quase sempre parece tolice aos olhos do leigo.

O que leva alguém, por exemplo, a estudar a composição química da saliva de um morcego-vampiro-comum? Ou que tipo de ultra-som um morcego emite em diferentes situações de caça? Ou a maneira como a tinta nanquim se espalha em um copo d’água?

Por que alguns nerds do século XVIII se preocuparam em saber se seria possível passear pela antiga cidade de Königsberg, passando por todas as suas pontes, mas sem repetir nenhuma delas?

Infelizmente, muito do que fazemos na Ecologia e outras ciências naturais é visto pelo público geral como inútil ou esotérico, mero jogo mental. Quem pensa assim não poderia estar mais errado.

Sem a base não há a aplicação

Apesar do preconceito contra as pesquisas de base, investigações supostamente esotéricas como as mencionadas acima criaram as bases para uma infinidade de aplicações práticas. Aplicações que salvam milhões de vidas todos os anos e tornam melhor a vida de outros milhões.

Vamos usar como exemplo o caso das pontes de Königsberg. No começo do século XVIII, alguns nerds da cidade de Königsberg, na antiga Prússia (que atualmente se chama Kaliningrad e fica na Rússia), ficaram encucados com essa questão das pontes. A pergunta que tanto os inquietava tinha a ver simplesmente com um passeio pelas pontes da cidade.

Resolver esse problema se tornou uma verdadeira mania, mas ninguém conseguia chegar a uma resposta convincente. Contudo, em 1736, Leonhard Euler, um matemático suíço que vivia lá na época, matou a charada e, de quebra, criou a teoria de grafos.

Essa nova teoria lançou as bases para a teoria de redes, que é quase onipresente hoje em dia. Ou seja, tudo começou como uma brincadeira de nerds, típico probleminha de contracapa de revista de curiosidades. Mas deu origem a uma das teorias mais aplicáveis da história, que nos ajuda a planejar e gerenciar desde malhas de aeroportos até redes de computadores. E ela também nos ajuda a prever e controlar pandemias.

Sim, pandemias! A teoria de redes está sendo fundamental para lidar com a pandemia de Covid-19, assim como foi essencial em outras pandemias, sindemias, epidemias, endemias e surtos epidêmicos em geral. Há anos cientistas que usam a teoria de redes para entender doenças emergentes, como as causadas por coronavírus, já haviam alertado que não estávamos preparados para o que estava por vir. Nós, cientistas, chegamos até a fazer um evento internacional com uma simulação do surgimento de uma nova pandemia de coronavírus, em outubro de 2019. Mas ninguém deu ouvidos.

Se os políticos não dão ouvidos nem a uma simulação com aplicabilidade mais do que óbvia, imagine se o problema das Sete Pontes de Königsberg tivesse surgido hoje em dia? Imagine se um desses nerds tivesse submetido um projeto sobre o tema para uma grande agência de fomento? Provavelmente teria ouvido que a idéia era perda de tempo, pois não tinha aplicação prática. Pior ainda, se o nerd tivesse sido convidado para um talk show da moda, certamente teria que aturar uma humilhação pública promovida por algum apresentador que provavelmente sequer abriu um livro no último ano.

Há muitos exemplos ligando a base à aplicação

Quem poderia imaginar que, na saliva dos morcegos-vampiros, seriam descobertas  substâncias que hoje são usadas em medicamentos para a circulação?

Quem poderia imaginar que um cientista italiano, lá no século XIX, descobriria que morcegos usam ultra-sons para se orientar no escuro, e que essa descoberta fundamentaria tecnologias como o sonar de navios e o ultra-som médico?

Quem poderia imaginar que as idéias desenvolvidas por nerds brincando de jogar tinta em copos d’água dariam origem à teoria da percolação, usada para resolver um mundo de problemas práticos, que vão desde a descontaminação de áreas onde houve derramamento de óleo até o controle de epidemias?

Existem centenas de exemplos como os apresentados acima. Praticamente todas as grandes descobertas da humanidade, que mudaram nossa forma de nos vermos e vermos o mundo, nasceram a partir de pesquisa básica, orientada apenas pela curiosidade de um cientista.

A iniciativa privada geralmente só entra no jogo depois que a base está garantida

É claro que precisamos fazer também ciência aplicada, de desenvolvimento, translacional e estratégica. Essas abordagens são essenciais para resolver problemas práticos e promover avanços tecnológicos e sociais. Mas não podemos nunca nos esquecer de que, para ser possível aplicar um conhecimento, primeiro é preciso que ele seja gerado (como aplicar o que não se sabe?).

Você sabia que a internet e os smartphones nasceram originalmente como projetos públicos, financiados pelo Estado? Só depois que todo o trabalho de base havia sido feito, e os riscos haviam sido minimizados, é que os empreendedores entraram em cena e transformaram essas invenções em produtos de massa.

Pagamos um preço caro ao desvalorizar a base

O fato é que a moda de desvalorizar a ciência básica tem graves consequências. Por exemplo, os taxonomistas, biólogos que classificam os seres vivos em espécies, estão em extinção, porque as agências de fomento acham que o dinheiro público é melhor empregado em pesquisas com aplicação mais clara. Quem defende aplicação a qualquer custo se esquece de que a Taxonomia é a base de toda a Biologia: sem uma boa classificação dos seres vivos não se faz mais nada.

Vários outros ramos da ciência básica, em diferentes áreas, também estão em perigo. A situação é ainda mais séria em países que vivem sob ditaduras assumidas ou veladas, nas quais o líder ou um comitê qualquer de burocratas se outorgam o direito exclusivo de decidir quais pesquisas podem ou não ser feitas.

O que mais me assusta é notar que até mesmo alguns cientistas compram o discurso falacioso de que toda pesquisa precisa ter uma aplicação prevista a priori. Sempre foi comum ouvir esse argumento tolo entre leigos, mas ouvi-lo de cientistas já é demais.

Seja por estupidez ou competitividade (afinal de contas, os “aplicados” ficam com a maior fatia do bolo), isso é um verdadeiro tiro no pé. Quero ver os colegas que se acham melhores do que os outros só por fazerem pesquisa aplicada manterem linhas de investigação realmente inovadoras e relevantes sem lerem os papers da ciência básica.

Para quem ainda acha que os “fiscais da natureza” fingem que trabalham e apenas passeiam pela floresta, estudando a patinha do besouro e sua relação com o sexo dos anjos, recomendo fortemente visitar sites como o do Instituto de Biomimetismo e rever seus preconceitos.

As aplicações do conhecimento biológico de base são infinitas. E mais descobertas impactantes só serão feitas, enquanto cientistas curiosos e bem-treinados tiverem liberdade suficiente para estudar suas “questões intangíveis”.

Para saber mais

  1. Fundamental ecology is fundamental
  2. Fábricas de conhecimento
  3. Por que a Ciência Básica importa? Um olhar especial para a Biologia
  4. On the usefulness of useless knowledge
  5. Why knowledge for the pure sake of knowing is good enough to justify scientific research
  6. Nos países desenvolvidos, o dinheiro que financia a ciência na universidade é público
  7. Research council sacrifices basic research on the altar of commerce
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Pensamento final: “se raiz forte, bonsai forte” (Myagi 1986). Fonte: filme “The Karate Kid Part III” (1989)

Fonte da imagem destacada.

25 respostas para “A ciência básica é a base!”

  1. Tinha esse blog salvo aqui nos meus favoritos mas ainda não tinha começado a me aprofundar… excelente! Já entrou pra lista de favoritos. Bom encontrar colegas que valorizam a ciência fazendo textos de qualidade. Se quiser, dê uma olhadinha nos textos do meu blog também. Grande abraço!

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  2. Muito legal Marco! Curto seus pontos de vista ha um bom tempo. Trabalho com ecologia básica de mamíferos. É o que me motiva e dá prazer pesquisar. Quanto menos conhecida a espécie, mais instigado fico a estuda-la. O problema – e coloco isso em discussão com você e com quem mais quiser se manifestar – é a dificuldade de publicar os tais dados básicos. Atualmente somos avaliados por nossas publicações, e cada dia se torna mais difícil publicar dados básicos sobre as espécies. Mas como gerar boas perguntas quando não conhecemos nada sobre o animal? Como gerar perguntas e estudos mais complexos se não sabemos nem o básico? Recentemente tive a honra de participar dos workshops de revisão do status de conservação de algumas espécies. Neste ambiente, senti o quão importante eram as minhas pesquisas, já que muito daquilo com que trabalho era diretamente aplicável à conservação. Isso vem ao encontro do seu texto, ok! Mas os editores e revisores dos bons periódicos simplesmente descartam trabalhos mais descritivos. Dessa forma, pesquisadores de base, são menos valorizados, recebem menos oportunidade, tem menos acesso a verbas de pesquisa… Com isso produzem menos, e por isso são menos valorizados… um vortex! Hehehe… Enfim, embora acredite no meu trabalho, me sinto um tanto quanto desvalorizado. E não vejo muita perspectiva de melhora deste quadro. Tomara que eu esteja errado e que possamos um dia ser mais respeitados como pesquisadores. Um abraço! Benhur

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    1. Oi Benhur, obrigado! Acho que o segredo de publicar bem trabalhos descritivos é fazer uma contextualização que os torne interessantes para um público amplo. Por exemplo, um bom abstract e uma boa introdução de um artigo descritivo sobre uma espécie de mamífero não devem apenas justificar o trabalho dizendo “nada se sabre sobre esta espécie ou este ambiente”. Pelas estimativas atuais, 90% das espécies de seres vivos, fora os microorganismos, não têm nem taxonomia definida. Por que estudar essa espécie exatamente e não outra? Por que estudar esses aspectos escolhidos e não outros? Quando não se sabe nada sobre algo, qualquer coisa é novidade, mas algumas novidades interessam a mais gente do que outras. Outro exemplo: para alguém que gosta de fazer estudos bem naturalistas, como listas de espécies, a pergunta óbvia seria: “por que essa localidade e não outra?” Uma dica é escolher a área de estudo com base em critérios bem pensados, por exemplo, tomando como base artigos que apontem lacunas geográficas na amostragem do grupo de interesse. Contexto é a chave!

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      1. Olá professor Marco. Olá professor Benhur. Como sempre, prof. Marco escreveu um excelente texto. Parabéns! Nesse caso, um texto que destaca a importância da ciência básica e revela os motivos do ceticismo de “quem decide como liberar a verba” para esse tipo de pesquisa e a para a pesquisa aplicada. Por acaso, após ler o comentário do prof. Benhur e a resposta do prof. Marco, me deparei com esse texto publicado na PNAS: “Finding the plot in science storytelling in hopes of enhancing science communication”, http://www.pnas.org/content/114/31/8127. De uma maneira geral os autores demonstram como a forma de escrever (seja um projeto para pedir fomento ou um paper) afeta a interpretação do leitor, e citam alguns exemplos do porquê a ciência básica “está aquém de gerar níveis adequados de entusiasmo no público” (trecho grosseiramente traduzido) ou nos burocratas. Em outras palavras, o que estou querendo dizer é que, sim: “contexto é a chave!” Além disso, “alcançar uma audiência geral enquanto comunica conteúdo científico é talvez tanto uma arte quanto uma ciência, e a arte de sucesso gera emoção”. Ou seja, o segredo de um estudo descritivo pode estar na maneira como esse estudo afeta as emoções de quem o está lendo. Isso pode ser uma tarefa difícil, uma vez que textos científicos não costumam ser pensados para afetar as emoções do leitor.

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        1. Caro Jhonny, muito obrigado por seu comentário. Sim, conheço esse artigo e concordo plenamente. Precisamos melhorar muito na comunicação com o público leigo. Na verdade, precisamos melhorar também na comunicação interna, dentro da Academia. Artigos científicos não precisam ser áridos, chatos de ler.

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  3. Ótimo texto Marco….é bom saber que existem pessoas que defendem a ciência básica. Sempre fiz ciência básica e sempre me deparei com a pergunta feita por leigos e por alguns colegas “mas pra que serve o que vc estuda?”

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  4. Prezado Marco Armello:

    Imediatismo é uma das piores consequências do nosso sistema econômico. Isso não causa apenas a priorização da ciência aplicada como também causa pesquisa de má qualidade, feita às pressas, feita de modo que caiba dentro do prazo do projeto aprovado ou dentro do triênio em que se deve prestar contas dos resultados. As pesquisas estão fatiadas (“salami science”) e, retiradas de seu contexto mais amplo, estão ficando sem sentido (“fast food/junky science”).

    A “necessidade” de se pesquisar apenas o que as agências de fomento ou empresas aprovam, tendo como parâmetro algo imediatamente palpável, deverá causar, num futuro não tão distante, o exaurimento da pesquisa aplicada por falta de fundamentação científica (não haverá mais nada para ser aplicado, pois deixou-se de fazer pesquisa de base).

    E parabéns pelo blog!

    Att,

    Josué Mastrodi

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  5. Me sinto feliz e contemplado pelo seu belo discurso. Obrigado. Explicar para o mundo porque eu estudo a reprodução de esponjas é uma tarefa árdua, porque as pessoas não veem a aplicação direta disso. A partir de hoje irei sempre dizer: se raiz forte, bonsai forte! (pena que a galera mais nova não vai entender a brincadeira, mas tá valendo!).

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      1. Parabéns pelo artigo, informações valiosas. O pensamento final é a mais pura realidade que motiva os estudiosos da ciência.

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