Acorde e sinta o cheiro do café

Sabe aquele clima de paz e amor que parecia estar rolando no primeiro semestre? Pois é, a ilusão acabou. Hora de despertar para a realidade.

Sente-se, que lá vai mais uma pistolada aqui no blog. Se você não aguenta emoções fortes, melhor deixar este post de lado.

Bom, assim que estourou a pandemia de Covid-19, não a levamos muito a sério. Parecia que era um problema distante, mais um dos vários surtos que no final acabam sendo resolvidos localmente. Só que o novo coronavírus se espalhou a jato (literalmente) e virou o mundo de cabeça para baixo.

Aos poucos, cada um de nós foi caindo na real. Depois que muitos entenderam o que estava acontecendo (tem gente até hoje chafurdando em teorias da conspiração…), veio uma onda de otimismo. Quem sabe, depois desse grande abismo na jornada, não viria uma fase de redenção e profunda transformação?

Quem sabe, assim que a fase mais crítica da pandemia passasse, repensaríamos o nosso estilo de vida e começaríamos a construir um mundo mais solidário, igualitário e sustentável?

#soquenão

Pelo jeito, era só euforia passageira, talvez uma forma de lidar com a dura realidade de um mundo cruel, passando pela maior crise da nossa era. Tão logo virou o segundo semestre, já era possível notar sinais de que voltaríamos em breve ao “velho normal”.

“Mas, Marco, que sinais eram esses?”

Por exemplo, governos municipais e estaduais simplesmente “decretaram” que a pandemia havia acabado. O comércio reabriu em todo o país e as pessoas se sentiram à vontade para retomar boteco, churrasco e praia. Muitas pessoas nem mesmo se preocuparam mais com cuidados básicos, como máscara, higiene e distanciamento. Até pessoas que se arrogavam super-conscientes nos primeiros meses chutaram o balde.

A propósito, não, a pandemia ainda não acabou!

Aqui vale uma ressalva. Sem que implementemos um programa sustentável de renda básica universal, o isolamento nunca será uma opção viável para a maioria dos brasileiros. Em um país tão desigual, elitista e racista quanto o nosso, enquanto uma pessoa se tranca em casa, outra é obrigada e pegar o ônibus lotado para ir limpar a privada dela.

Voltando ao ponto, até mesmo as universidades públicas, que por alguns meses pareceram finalmente estar funcionando como faróis para a sociedade, jogaram a toalha. Algumas delas já estão determinando a volta compulsória ao trabalho presencial. Não, você não leu errado.

Isso mostra que a Academia, ao invés de apontar um caminho desde as águas tempestuosas até o porto, passando longe das pedras, mais uma vez está apenas seguindo a maré. Portanto, prepare-se também para uma volta aos níveis de toxicidade habituais no nosso meio. Na verdade, as brigas de ego, fofoca e sabotagem já foram convertidas para um formato remoto emergencial.

Sim, a academia está cheia de gente tóxica. Na dúvida, é melhor se testar também:

Infelizmente, a toxicidade na Academia deve piorar, porque muitos dos problemas que enfrentamos nascem da competição feroz no nosso dia a dia. Competição essa típica da ciência profissional e de outras carreiras de alta performance.

Imagine então como vai ficar o nível dessa competição no ano que vem, com muito menos dinheiro de impostos circulando? E com a moda anti-ciência ainda firme e forte entre os políticos e a sociedade, secando as nossas verbas?

Estamos entrando em um cenário de bolsas, empregos e auxílios cada vez mais escassos, em que, para piorar, cientistas são difamados regularmente nas redes sociais. Os ataques a nós estão piorando e muitos “guerreiros de teclado” estão vendo pela primeira vez na vida o que é enfrentar uma batalha real.

“Mas, Marco, pare de me assustar! O que posso fazer de concreto?”

Pare e respire. Eu quero te ajudar a se ajudar.

Primeiro, nas próximas eleições, vote conscientemente em gente que valoriza a ciência. Ou pelo menos em gente que não propaga teorias da conspiração e não vê o mundo em preto-e-branco. Deixe as ideologias e o sebastianismo de lado e tente usar a razão na urna, não a emoção.

Segundo, reflita: a ciência é mesmo o seu ikigai?

Se ela não for, fuja para as montanhas.

Se ela for, seguem alguns conselhos práticos para você acordar e sentir o cheiro do café. Estes conselhos são focados em acadêmicos, especialmente aqueles que ainda não conquistaram um lugar ao sol. Minha intenção aqui é alertar aspiras e novatos para a realidade, enquanto vocês ainda têm tempo de se adaptar ao coronamundo.

1. Desapegue-se

O mundo já mudou e ninguém é capaz de prever com absoluta certeza para onde ele está caminhando no futuro próximo. Antes da pandemia, já não estávamos numa fase boa, então as perspectivas não são nada animadoras.

Aceite isso, desapegue-se de sonhos e planos, e adapte-se imediatamente à nova realidade. Reveja as suas prioridades e metas. Lembre-se:

“Não é a mudança que causa sofrimento, mas sim a resistência à mudança”

Tathagata

Assim que se desapegar, faça um processo de luto. Isso é fundamental para lidar com grandes perdas de forma saudável.

2. Cuide da sua saúde física e mental

Voltando ao ponto inicial, afaste-se de pessoas tóxicas, sejam elas colegas, amigos ou até mesmo parentes. Sério, você não tem como ajudar essas pessoas. Elas precisam de profissionais para sairem do buraco.

Não descuide das suas necessidades básicas. Mantenha ou crie uma boa rotina de descanso, alimentação, hidratação, atividade física, lazer, espiritualidade e não-ação (無為).

Evite consumir notícias demais. Foque a sua atenção no que é perene e profundo, não em factoides ou modas. Gaste mais tempo com livros do que redes sociais.

Busque fortalecer as suas emoções usando o tipo de treinamento que funciona melhor para você. Pode ser psicoterapia, religião, esporte, arte, meditação ou o que for.

3. Se puder, volte a trabalhar duro

Muita gente está paralisada até agora, sem conseguir render o tanto que rendia antes da pandemia. OK, o mar não está para peixe. Mas, se você não reagir, o mundo vai te mastigar e depois cuspir o caroço fora.

Se você for uma pessoa privilegiada, lute! Estou falando com quem tem o que comer, onde morar e manteve bolsa ou salário. Estou falando com quem não tem que cuidar de crianças, idosos ou inválidos em casa.

Liberte-se da autopiedade. Ninguém vai correr atrás do seu sonho a não ser você. Enquanto você fica se arrastando, seus concorrentes estão disparando na frente. Sou assessor de várias agências de fomento e vejo que tem gente florescendo na crise. De qualquer forma, o sonho de conquistar uma carreira acadêmica sempre exigiu um sacrifício enorme, especialmente de minorias marginalizadas. Agora o preço aumentou.

Se você não for uma pessoa com esses privilégios, repense os sacrifícios que está disposta a fazer pela carreira acadêmica. Sério, tem coisas que simplesmente não valem a pena. Mas só você pode tomar essa decisão.

4. Cogite carreiras alternativas

O fato é que nunca coube todo mundo dentro da Academia. A nossa profissão é altamente especializada e competitiva. Formamos muito mais doutores e mestres do que o mercado absorve. Isso não seria um problema, se governos e PPGs lidassem honestamente com a realidade.

Uma formação científica sólida oferecida aos jovens é útil para várias carreiras e ajuda enormemente o nosso país a se desenvolver. Pense que várias das habilidades que você aprendeu na pós-graduação são transferíveis.

Você deve, no mínimo, ter aprendido a pensar de forma lógica, levantar informações sobre um tema de interesse, delimitar problemas para torná-los tratáveis, coletar, analisar e interpretar dados, gerenciar equipes, e comunicar-se com boa retórica. Se você for uma pessoa antenada, deve ter aprendido também habilidades em ciência de dados, como programação, hype no mundo de hoje. Comece a refletir sobre como pode vender essas habilidades fora da Academia.

5. Ajude os outros

Bom, coloque a sua máscara de oxigênio, antes de ajudar crianças e idosos. Colocou-a? Ótimo! Se você já tiver um emprego acadêmico garantido, coloque também as coisas em perspectiva.

O cenário para fazer pesquisa piorou muito, mas o ganha-pão da sua família não está tão ameaçado quanto o de outras famílias que vivem no mundo real. Crises são cíclicas e acabam passando alguma hora.

E, mais importante, se você já estiver em um estágio mais avançado da carreira, certamente tem algum poder dentro do nosso pequeno mundo. Então use o seu poder para regular as engrenagens da máquina acadêmica e ajudar os seus colegas. Especialmente os mais júniores e que pertencem a minorias, pois eles estão passando por um moedor de carne. Ajude-os também de forma direta e pessoal. Distribua as dádivas que recebeu na sua jornada.

Decida conscientemente se você quer ser uma pessoa que ajuda a mitigar os efeitos da pandemia ou uma pessoa que torna as coisas piores. Tenha empatia, desenvolva o ágape e pratique a caridade.

Conselho final

Neste ponto, você provavelmente está sentindo raiva de mim. Deve até estar me culpando pelos seus próprios problemas. Mas, acredite ou não, estou aqui para te ajudar. Às vezes, a melhor ajuda é uma boa sacudida:

Agradecimentos: agradeço à Regina Alonso por revisar este texto e melhorar muito o foco da mensagem.

Adendos

02/12/20: acho que nem preciso comentar essa notícia abaixo…

02/12/20: no mesmo dia, um pouco mais tarde, confirmou-se que era mais uma cortina de fumaça, um factoide publicado no Diário Oficial.

08/12/20: não, infelizmente, parece que não era só mais um factoide.