O que se espera de um projeto de pesquisa em diferentes níveis acadêmicos?

Mais uma vez, seguindo uma ótima sugestão do Pavel Dodonov, resolvi escrever um post sobre um assunto que angustia muitos aspiras: o que se espera de um projeto de pesquisa, dependendo da fase da carreira em que você está?

Como já comentei em outros posts, espera-se de um cientista de qualquer nível, do aspira ao profissional, que, antes de começar um novo projeto, ele saiba exatamente aonde quer chegar e qual é a relevância do conhecimento buscado.

É preciso ter claro também em quais grandes teorias o projeto se encaixa e como exatamente as idéias serão operacionalizadas e os dados serão analisados. Além disso, um bom cientista deve sempre ter como objetivo gerar conhecimento novo ou testar o conhecimento estabelecido, não importando se o projeto é puramente acadêmico ou aplicado. Chover no molhado é para os picaretas. Ou seja, todo projeto deve almejar a originalidade.

E um projeto só pode ser considerado realmente concluído, depois que resulta em uma publicação. Pode ser um artigo, um livro, uma patente ou qualquer outra forma oficial de comunicação científica escrita.

Ok, tendo em mente essa base (“se base forte, bonsai forte” – Myagi 1986), vamos considerar agora as sutis diferenças quanto ao que se espera de projetos desenvolvidos por cientistas de diferentes níveis. Como tudo aqui no meu blog, essas dicas se baseiam na minha experiência pessoal e em técnicas e macetes que aprendi com orientadores, colegas e leituras variadas. No caso específico das expectativas quanto a projetos, essa base vem principalmente da minha experiência como proponente e assessor de projetos submetidos a agências de fomento nacionais e internacionais.

Projeto de iniciação científica

Ao contrário do péssimo costume de muita gente, projetos de ICs devem, sim, ser originais! Qual é o sentido de ensinar um aluno de graduação a fazer pesquisa científica através de um projeto que é apenas “mais do mesmo” ou foca apenas em “reinventar a roda para ver se ela sai redonda de novo”? Se a ideia é a pessoa apenas passar um tempo em um laboratório, sem necessariamente aprender a desenvolver projetos, então ela deve fazer um estágio de graduação.

Por causa dessa confusão que rola sobre o sentido de uma IC, muitos acabam estimulando desde cedo o vício da falta de originalidade. Ele é muito cômodo para o orientador e o aluno, mas representa desperdício de tempo, dinheiro e energia para todos os lados envolvidos (inclusive os cofres públicos).

Ok, mas o que exatamente se espera de um projeto de IC? Espera-se que o projeto seja, sim, original, porém simples. Por exemplo, dentro do contexto maior da linha de pesquisa do laboratório ou do contexto mais restrito da linha de pesquisa de um doutorando ou postdoc, um aluno de IC pode, com a ajuda do orientador, elaborar um projeto que vise resolver uma questão menor deixada sem resposta. No fim, o projeto do aluno de IC estará bem contextualizado e ajudará do desenvolvimento de um projeto-mãe, mas tendo originalidade suficiente por si mesmo.

Além disso, um projeto de IC é o tipo que deve contar com mais input intelectual e braçal do orientador e dos colegas seniores, pois será realizado por um aluno sem experiência alguma. Não tem problema, por exemplo, o orientador propor um projeto já elaborado ao aluno de IC, que ficará encarregado de desenvolvê-lo e dar seu toque pessoal. É claro que o orientador, caso entregue ao aluno um projeto nas mãos, deve explicar-lhe a fundo toda a base conceitual e operacional.

Ao fim, espera-se que um bom projeto de IC resulte em um artigo completo ou uma nota publicados em um uma revista revisada pelos pares e indexada. Não se espera que seja uma revista top da respectiva área, mas pelo menos que seja uma boa revista, respeitada pelos colegas. É claro que alunos outliers sempre podem surpreender e acabar publicando na Science. Por que não?

Projeto de mestrado

O grande pulo da iniciação para o mestrado é o fato de o aluno de mestrado já ser um profissional formado (biólogo, ecólogo, agrônomo, florestal etc.). Contudo, apesar de legalmente ele já poder exercer uma profissão, o mestrando, para o mundo acadêmico, ainda não é um cientista profissional.

Logo, ele deve fazer um projeto mais aprofundado do que na IC, porém ainda deve contar com bastante input do orientador. Assim como um graduando, um mestrando pode também receber uma idéia de projeto já pronta. Porém essa idéia não deve estar fechada, mas sim ser apenas uma sugestão avançada de um problema, que o mestrando deve desenvolver até virar um projeto bem elaborado.

Um projeto de mestrado não precisa necessariamente estar inserido no contexto de um projeto-mãe mais amplo, mas isso sempre é bom, quando possível. Ao final, espera-se que o projeto resulte em pelo menos uma boa publicação.

Projeto de doutorado

Supondo que o aluno neste nível já passou pela experiência de desenvolver ao menos um projeto de iniciação e outro de mestrado, além de outros projetos paralelos, a idéia para o projeto de doutorado deve partir dele mesmo. Essa visão varia de orientador para orientador, mas eu, particularmente, não gosto de dar sugestões de projetos para doutorandos. O que faço é estimular a pessoa a refletir sobre o que a motiva.

O curso de doutorado dura quatro longos alunos, envolvendo trabalho duro, sangue, suor e lágrimas. Portanto, para o doutorando sobreviver ao projeto e ao curso, saindo ao final com uma boa formação e um currículo competitivo, além de receber boas condições de trabalho ele deve estar absolutamente apaixonado pelo seu tema de pesquisa. Essa motivação quase obsessiva fica mais fácil de atingir, se o aluno propuser o projeto por conta própria, seguindo suas paixões pessoais.

Neste nível, cabe ao orientador ajudar o aluno a aparar as arestas, focar suas idéias e contextualizar seu projeto dentro de grandes problemas científicos. Mas a maior parte do esforço deve vir do próprio aluno. É no doutorado que se ganha a faixa preta acadêmica e após a defesa começa a sua vida como cientista independente.

Outro ponto importante é que o projeto de doutorado pode ser modular. Ou seja, ele não precisa ser focado em apenas uma única hipótese de trabalho. Ele pode conter mais de uma hipótese ou linha de investigação, desde que esses “módulos” todos apontem para uma mesma pergunta central.

Ao final, espera-se que um bom projeto de doutorado resulte ao menos em um artigo excelente publicado ou aceito em uma ótima revista. Não precisa ser uma top absoluta, como Nature e Science, mas uma top de área, como Oecologia, Ecology, Journal of Zoology, Biological Invasions etc.

Projeto de postdoc

Um postdoc já é um faixa-preta em ciência, então espera-se do seu projeto grande originalidade e relevância. Um projeto de postdoc deve ser ousado, fora da caixinha.

O postdoc ainda não tem tantas amarras quanto um professor ou pesquisador com emprego estável, então ele tem ainda mais liberdade para arriscar idéias inovadoras. Nada é mais “brochante” para um assessor de agência de fomento ou revisor departamental do que ter que avaliar um projeto de postdoc que fica apenas na zona de conforto da época, propondo andar por caminhos já trilhados.

Eu recomendo fortemente usar os anos como postdoc para se desenvolver ao máximo, com o objetivo de dar o grande pulo qualitativo. Isso te fará ser reconhecido pelos seus pares como um cientista independente, com um futuro promissor, no qual vale a pena investir.

Além disso, um postdoc deve se envolver mais com orientação, propondo um projeto-mãe no qual caibam projetos menores desenvolvidos por alunos de graduação, mestrado e doutorado. Se um laboratório fosse um restaurante gourmet, um postdoc seria como o sous-chef do orientador. Além disso, um projeto de postdoc deve ser necessariamente modular, tentar abordar a pergunta de trabalho por vários ângulos.

Ao final, espera-se que um projeto neste nível resulte em mais de uma publicação excelente, em revistas top da área. O postdoc também deve começar a organizar sessões em congressos e se responsabilizar por linhas dentro de grandes projetos temáticos (como PPBio, PELD, Biota etc.), mostrando liderança na comunidade acadêmica.

Projeto de profissional

É o tipo de projeto desenvolvido por um professor universitário ou pesquisador de um instituto, ONG, indústria, clínica etc.

Um projeto neste nível deve necessariamente almejar abrangência e diversidade de metas: (1) resolver um problema científico amplo, original, atual, relevante e impactante, que seja acadêmico ou aplicado; (2) ajudar na formação de novos cientistas; e (3) divulgar conhecimento ou capacitar diretamente o público leigo.

Essa é uma enorme responsabilidade com a sociedade, que cabe a um cientista já treinado e calejado, que já concluiu sua Jornada do Cientista. Espera-se que um projeto neste nível resulte em artigos, livros, teses, patentes, apostilas, apresentações em congressos, matérias em jornais, audiências públicas, cursos e outros produtos.

Amarrando as pontas

Agora vou explicar tudo isso mais concretamente, através de um exemplo hipotético: se o foco de pesquisa de um laboratório hipotético fossem interações entre organismos de espécies diferentes, como poderiam ser integrados os projetos de novatos e aspiras de diferentes níveis?

O projeto de um postdoc poderia ser focado, por exemplo, em entender os processos que geram as estruturas observadas em redes de interações.

Um doutorando poderia trabalhar dentro desse projeto, desenvolvendo uma linha de pesquisa sobre os fatores que levam diferentes espécies de morcegos a se tornarem mais importantes do que outras para a dispersão de sementes.

Por sua vez, um mestrando poderia focar a sua tese em um esmiuçar um desses fatores mencionados acima, tentando entender experimentalmente como a influência dele varia em função de diferentes condições.

E um aluno de iniciação poderia fazer um experimento em cativeiro com uma ou poucas espécies de morcegos, para testar uma dessas condições.

No final, todos se ajudariam, cada projeto resultaria ao menos em uma publicação com o respectivo aluno responsável como primeiro autor. Seria possível até mesmo todos escreverem juntos um artigo mais ousado, tendo o orientador como líder e fazendo uma síntese da história completa. Esse arranjo é apenas um dentre muitos possíveis.

Um orientador pode tornar esse esquema hierárquico claro para os membros do seu laboratório através de mapas mentais bem elaborados. O hábito de germinar projetos primeiro como mapas mentais antes de transformá-los em texto ajuda muito a organizar as próprias idéias e a integrar os esforços da sua equipe.

Conselho final

A vida é curta demais para ser desperdiçada fazendo mais do mesmo.

(Fonte da imagem destacada)

21 respostas para “O que se espera de um projeto de pesquisa em diferentes níveis acadêmicos?”

  1. Parabéns pelo texto! Apenas algumas considerações… Apesar da questão de não ter pressa após o doutorado para entrar numa carreira docente, esta é uma situação ideal mas não necessariamente real, em se tratando de Brasil. Quantos podem esperar o amadurecimento e aperfeiçoamento após o doutorado para só depois pensar numa carreira docente? Como este doutor está se mantendo, com a ajuda dos pais? Acredito que o amadurecimento e a experiência docente vindos cedo, também são válidos. Há doutores que são considerados péssimos professores, pois além de não terem passado por nenhuma formação pedagógica, apenas recentemente entraram numa sala de aula. Sou professor de Universidade federal e entrei como mestre, ainda não pude sair para o doutorado, mas já é minha próxima meta. A minha experiência como mestre nas Universidades já me deu condição de ser um doutor melhor do que se eu imendasse direto do mestrado ao doutorado sem experiência docente. E para quem precisa trabalhar, não pode esperar tanto do lado de fora da academia por essa reflexão, e degustação do título.

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    1. Oi Sandro, obrigado por seus comentários. Sim, ganhar o pão e pagar as contas é uma questão vital para todos que não podem contar com dinheiro de família. Ou seja, para a grande maioria de nós, acadêmicos. Uma forma de se manter durante a fase de amadurecimento depois do doutorado são as bolsas e contratos temporários de postdoc. Alguns programas, como o JP da Fapesp, pagam bolsas de postdoc que garantem um padrão de vida bem decente, ainda mais se considerarmos a realidade dos salários no Brasil. Quando à experiência docente, essa é outra questão, que envolve outro tipo de treinamento. A pós-graduação acadêmica é focada em ensinar habilidades de pesquisa e realmente peca nas habilidades de ensino. Mas melhorar essa parte não tem a ver com a questão do amadurecimento do recém-doutor, mas sim com a formação dos aspiras durante a jornada.

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  2. Marco, é a primeria vez que deixo um comentário aqui no blog mas acompanho os textos há um certo tempo. Sempre que posso volto para dar uma recaptulada em alguns bem interessantes, pois estou na fase da elaboração de projeto de pósdoc. Concordo plenamente com o texto, parabéns cara!

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  3. É impressionante como a ecologia brasileira, de um modo geral, pensa na fronteira da ciência!
    Infelizmente, nós, (a maior parte) da geografia, ainda pensamos ‘dentro da caixinha’.
    A resultante disso é que somos ‘treinados’ para pensar assim e acaba sendo difícil buscar (e manter) este padrão de qualidade descrito na postagem.
    De qualquer modo, tenho que concordar com o texto. O caminho para a boa ciência é buscar sempre a inovação, originalidade e relevância dos projetos.
    Parabéns pelo texto.

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  4. Excelente texto, Marco! Ouso dizer que seja um dos melhores textos deste blog… E esclareceu algumas dúvidas minhas, pelo que estou muito agradecido!
    E gostei muito da parte “Não tenha pressa em conseguir um emprego fixo logo após o doutorado: aproveite a grande liberdade e flexibilidade da fase pós-doutoral.” Faz sentido… Para quem tem paixão por pesquisa, um tempo de liberdade antes de virar professor parece interessante! 🙂

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    1. Pavel, obrigado! Quanto à fase de postdoc, por um lado todos que passam por ela ficam estressados por terem que viver anos na base da renovação de projetos de 1, 2 ou 3 anos… Isso é especialmente estressante para quem é chefe ou arrimo de família. Por outro lado, é uma fase em que você combina a experiência de quem já passou pelo “ralo” da pós-graduação, com uma liberdade que nem alunos ou professores têm. Ou seja, para quem consegue se manter cool, pode ser a fase da carreira onde a pessoa dá o grande salto qualitativo que fará toda a diferença depois.

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