Pense duas vezes antes de virar cientista

Ser cientista é o sonho de muitas crianças curiosas. Contudo, depois que elas crescem e ingressam na Jornada do Cientista, se deparam com uma realidade bem mais dura do que imaginavam. Vamos refletir sobre essa diferença entre expectativa e realidade.

Bom, a ciência é um divertido quebra-cabeças cooperativo jogado por pessoas de vários países. Contudo, o dia a dia nessa carreira é muito duro, o ambiente de trabalho em geral é tóxico, a competição por verbas e empregos é brutal e os salários são piores do que em outras carreiras de alta performance (apesar de serem ótimos no contexto geral brasileiro). Assim, considere os seguintes pontos antes de ingressar na jornada.

O melhor motivo para querer se tornar cientista é ter uma curiosidade infinita

Não fazemos ciência para salvarmos o mundo, enriquecermos ou ficarmos famosos (apesar de essas coisas poderem acontecer). O dia a dia do cientista é muito trabalhoso e as recompensas são muito mais intelectuais do que materiais. Lidamos com frustração o tempo todo, na forma de experimentos que dão errado ou burocracias paralisantes, entre outras mazelas.

Portanto, só deve querer virar um cientista profissional a pessoa que tem um desejo quase obsessivo de fazer e responder perguntas. A melhor motivação para desenvolver um projeto é o projeto em si. Um cientista também passa a vida toda estudando, seja em cursos ou por conta própria, então o gosto pela leitura é um requisito essencial na carreira.

A jornada do cientista é dura e não dá garantias

Fora os 15 anos nos ensinos infantil, fundamental e médio, é preciso investir no mínimo mais 10 anos da sua vida adulta no ensino superior (graduação + mestrado + doutorado) para se tornar um cientista e começar de fato sua carreira independente, fora das asas de um orientador, sendo capaz de ter o seu próprio grupo de pesquisa, conseguir verbas, orientar alunos etc.

Preste atenção: esse é o tempo mínimo! Na prática, como há cada vez mais e mais doutores sendo jogados no mercado todos os anos e o número de empregos para cientistas não cresce proporcionalmente, a competição está cada vez mais brutal e a Jornada do Cientista costuma ser longa e dura. Isso é especialmente crítico nos melhores centros da ciência brasileira e mundial, para onde a maioria quer ir.

Assim, torna-se necessário investir também em alguns anos de pós-doutorado, sem estabilidade, a fim de se ter uma chance melhor de conseguir um emprego permanente como professor universitário ou pesquisador da indústria. Na Europa ocidental, por exemplo, o tempo médio como pós-doutor até conseguir um emprego estável gira em torno de 10 anos! Ou seja, estamos falando de 15 anos de ensino básico, 10 anos de ensino superior e mais 10 anos pulando de bolsa em bolsa (ou renovando contratos temporários): 35 anos de investimento! Quer dizer que, em média, você vai conseguir o seu primeiro emprego acadêmico estável depois dos 30 ou talvez perto dos 40 anos de idade…

Na Alemanha, por exemplo, apenas 5% dos doutores formados conseguem se estabelecer na Academia e mais uns outros 10% conseguem um lugar na indústria; o resto tem que mudar de carreira (o que não é necessariamente ruim!). No Brasil, os empregos para cientistas na indústria são muito mais escassos do que nos países desenvolvidos, então a única opção concreta que um aspirante a cientista tem de continuar nessa carreira é entrar na universidade (aí você terá que dar aulas também, mesmo que essa não seja sua vocação).

O cenário aqui no Brasil, no geral, é desanimador. Contudo, há mais vagas para professores universitários no Brasil do que em outros países, mesmo os desenvolvidos. Só que as condições de trabalho por aqui variam enormemente entre as regiões ou mesmo entre universidades de uma mesma região. Logo, conseguir um emprego não significa necessariamente que você vai continuar tendo condições de fazer pesquisas minimamente relevantes.

É importante deixar claro também que a fase de pós-doutorado é crítica, porque o cientista que chega nela já está tão especializado na pesquisa acadêmica e, mais especificamente, na área e tema que escolheu, que sua empregabilidade geral despenca: ele não tem boas chances de conseguir um emprego que não seja acadêmico e dentro da sua especialidade.

Se a conquista do tão sonhado emprego estável como cientista não se concretiza, a pessoa pode cair num limbo frustrante, onde tem que decidir entre investir mais alguns anos sem garantias de sucesso ou largar a ciência e começar quase do zero em outra carreira.

No caso dos cientistas com família, ainda deve-se levar em conta que quase sempre é necessário mudar de cidade, estado ou país pelo menos algumas vezes, porque as oportunidades nem sempre aparecem onde a gente quer. Isso costuma ser altamente estressante para cônjuges e filhos. Por isso, antes de embarcar nessa aventura, pense bem se será capaz de resistir a tanta pressão e frustração, lutando por um objetivo maior a muitos e muitos anos de distância.

Aqui neste ponto, pare, respire fundo e reflita

Fonte da imagem: A Vida de Biólogo.

Não perca as suas metas de vista

Seguir a manada é o que faz a maioria das pessoas, mas este não deve ser o comportamento de um cientista. O que é bom para um colega que você admira pode não ser bom para você. Como diz o provérbio, quem anda apenas por caminhos conhecidos só vai aonde os outros já estiveram. Sempre tenha em mente o que você quer da ciência e o que você pode oferecer a ela.

Planeje bem onde você quer estar, em termos intelectuais e profissionais, daqui a um, cinco e dez anos, e determine que passos precisa dar para vencer cada etapa até o seu sonho. Pergunte-se ao menos uma vez por semana: minhas atividades estão me colocando mais perto ou mais longe das minhas metas?

A relação orientador-aluno se parece com a relação mestre-aprendiz

Fazer iniciação científica, mestrado ou doutorado em um laboratório não é igual a trabalhar numa empresa ou estudar numa escola. Um orientador é uma mistura de professor e patrão, então a relação com os alunos muitas vezes é confusa para ambas as partes.

Um bom aluno é aquele que respeita a hierarquia do grupo de pesquisa, mas sem perder o senso crítico e a iniciativa. O bom aluno nunca aceita verdades prontas sem questionamento, mas também sabe a hora de baixar as orelhas e obedecer o mestre.

A sua formação depende principalmente do quanto você investe em si mesmo

Se você trabalhar duro e respeitar o seu orientador e os seus colegas, pode vir a se tornar um bom cientista. Não espere resultados milagrosos sem sangue, suor e lágrimas. Além disso, a maioria dos bons orientadores investe em cada aluno de maneira proporcional ao quanto ele investe em si mesmo. Aqueles que mostram mais interesse e se esforçam mais recebem cada vez mais e mais atenção. Os outros vão ficando para trás. Orientador não é babá, confessor ou terapeuta.

O trabalho do cientista muitas vezes requer mais do que 40 horas semanais, logo sacrifícios são necessários. É crucial manter o equilíbrio com a vida pessoal, mas isso nem sempre é fácil. A barra pesa especialmente na pós-graduação, uma fase crítica da carreira na qual temos que observar a Regra das Dez Mil Horas.

Não reclame da vida, pois há muitos e muitos anos, quando eu comecei nessa brincadeira, as condições para fazer ciência no Brasil eram ainda piores. De qualquer forma, mesmo em tempos de crise, aqui ainda damos muito mais vagas e bolsas para aspirantes a cientista do que no Primeiro Mundo. Nos países líderes da ciência mundial, a visão é dar muitos recursos para poucas pessoas, focando apenas nos melhores. No Brasil, a visão é oposta: dar poucos recursos para muita gente. A diluição acaba sendo tanta, que a verba de projetos individuais quase não dá para nada na maioria das áreas. E a verba dos projetões temáticos parece enorme, mas acaba diluída entre dezenas de participantes.

Por fim, invista também em cursos de inglês. Dominar a lingua franca do nosso tempo é fundamental, já que 90% dos trabalhos científicos são publicados nesse idioma. Você precisa também buscar fluência oral, para conversar com colegas estrangeiros em conferências.

Misturar política e religião com ciência não dá certo

Você pode ter opiniões pessoais sobre assuntos variados e manter quaisquer crenças de natureza política ou religiosa na esfera pessoal, além de seguir as leis do seu país e o código de ética do seu ramo profissional. Mas não misture as suas visões políticas ou religiosas com a sua prática científica, pois isso sempre resulta em má ciência.

Além disso, busque sempre a melhor resposta para cada pergunta, independente do resultado final. Às vezes a melhor resposta não é agradável e vai deixar alguém chateado com você.

Leia muito, mas selecione cuidadosamente a literatura

Escolha apenas os melhores livros e artigos, pois a literatura científica é gigantesca e você não terá tempo durante a sua vida para ler todos os trabalhos que saíram na sua área (na verdade, você nem terá acesso a todos). Além disso, a literatura está cheia de baboseira, então não perca tempo com trabalhos mal-feitos, irrelevantes ou pseudo-científicos (veja um outro artigo sobre a escolha da literatura).

Quanto aos cursos científicos, faça apenas os melhores, porque o mais importante para um cientista é estudar e aprender por conta própria.

Um bom networking é fundamental

A cultura pop nos passa a impressão de que cientistas brilhantes trabalham sozinhos em porões escuros fazendo as mais loucas descobertas. Quem tem um mínimo de experiência na academia sabe o quanto a realidade está longe disso. Para fazer boa ciência, não apenas hoje em dia, mas desde sempre, é preciso interagir com seus pares, ler os trabalhos que eles escrevem, participar de conferências e fazer visitas a outros laboratórios.

Um bom networking permite não apenas que você tenha acesso em primeira mão a novidades científicas, como também pode alavancar a sua carreira. É frequentando congressos que você torna seus artigos conhecidos; uma coisa alimenta a outra. Além disso, no seu dia a dia, ajude os seus colegas de laboratório e você receberá ajuda quando precisar.

Um projeto de pesquisa só termina após uma boa publicação

Uma boa publicação pode ser um artigo em uma revista científica revisada por pares, um livro ou uma patente, dependendo do escopo do seu estudo e dos costumes na sua área. Monografias, dissertações e teses, meras formalidades burocráticas para colar grau, são apenas o começo do fim. E, além de publicar o seu estudo decentemente, você tem que almejar relevância: ele precisa ser lido, citado, usado, aplicado etc.

Se você quiser ser tratado como profissional desde cedo, vá para fora

Felizmente, há no Brasil pessoas preocupadas com a situação precária dos pós-graduandos. Infelizmente, essas pessoas costumam ser difamadas por quem deveria aplaudi-las, tendo suas propostas boicotadas pelas ideologias retrógradas dominantes.

Portanto, se você quiser receber um excelente treinamento de cientista e, ao mesmo tempo, ter direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro, seguro desemprego etc., vá cursar o seu mestrado ou doutorado fora do Brasil. De preferência, nos países da Europa rica.

Na Alemanha, por exemplo, mestrandos e doutorandos têm três opções para se sustentar: (i) ganhar uma bolsa acadêmica através de uma agência de fomento, ONG, OI, projeto ou universidade; (ii) receber um contrato de pesquisador (“CLT”) através de uma agência de fomento, ONG, OI, projeto ou universidade; (iii) não ganhar nada e se manter com um emprego normal paralelo à pós-graduação para pagar os boletos.

Enquanto o Brasil não acorda para o século XXI e abandona velhas ideologias do século XIX, considere seriamente a alternativa de estudar fora.

Conselho final

O sucesso vem do trabalho duro, até mesmo para os supostos “gênios” (leia o livro Outliers, escrito por M. Gladwell).

“It’s something unpredictable
But in the end it’s right
I hope you had the time of your life”

Green Day

Outros artigos com conselhos para jovens cientistas

  1. Quer fazer doutorado em áreas biológicas? Leia antes esse texto
  2. Porque os jovens profissionais da geração Y estão infelizes
  3. Você quer mesmo ser cientista?
  4. Quem você espera que vá querer ser cientista?
  5. Os terríveis dois anos do mestrado
  6. In the academic job market, will you be competitive?
  7. Don’t become a scientist

* Versão modificada em português de um outro post escrito em 2009. Atualizado constantemente.

Ouça também outras opiniões sobre o tema:

53 respostas para “Pense duas vezes antes de virar cientista”

  1. Texto bastante interessante, no entanto no trecho “então a única opção concreta que um aspirante a cientista tem de continuar nessa carreira é entrar na universidade (aí você terá que dar aulas também, mesmo que essa não seja sua vocação)” faltou dizer que o professor universitário é responsável pela formação de profissionais cidadãos reflexivos. A docência não pode ser um bico para o cientista. A essência da universidade é a formação de profissionais, inclusive os cientistas. O professor precisa ter vocação sim. Uma sugestão pode ser um texto como esse exclusivo para o professor. No mais, parabéns pelo texto mais uma vez.

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    1. Sim, concordo, não é a melhor coisa. De qualquer forma, como eu disse em outros posts aqui no blog, se o sujeito conseguir um cargo de professor universitário, mas não gostar de ensino e orientação, problema dele, pois terá a obrigação de fazer essas outras atividades com igual seriedade. O melhor seria haver, além do cargo de professor, cargos mais especializados na universidade, por exemplo, só para ensino, só para extensão, só para pesquisa, só para administração. Na Europa, por exemplo, os cargos de professor, com múltiplas atribuições, são poucos. O grosso do quadro é formado por cargos especializados em um dos pilares da carreira.

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  2. Mais um belo texto.
    Sugestão ao próximo (se é que já não existe): como selecionar a “melhor” literatura.

    Sobre se tornar cientista, para você. o que o diferencia de um pesquisador (são sinônimos? é uma profissão? há regulamento? …)

    Abç

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    1. Obrigado, Patrick! E valeu pela sugestão; farei o próximo artigo sobre a escolha de leituras. Já tinha abordado esse tema en passent no “Como encontrar um artigo“, mas agora darei uma aprofundada. Quanto à diferença entre os termos que mencionou, na verdade, eles são originalmente diferentes, mas acabam sendo usados como sinônimos em muitos lugares. Logo, sua separação fica meio bagunçada, tênue. Eu sigo o conceito mais operacional, explicado no Volpato 2007. Pesquisador é quem executa pesquisas, não importando se as elaborou ou não, se são originais ou não, e tem um perfil mais técnico. E cientista é quem elabora pesquisas originais, pensa em novas perguntas, hipóteses e teorias, e tem um perfil acadêmico. Então o pesquisador seria mais como um técnico, enquanto o cientista teria um escopo de trabalho mais amplo.

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      1. Eu que agradeço pelas suas contribuições em “creative commons” rsrsrsrs… e pelo rápido retorno!

        Tenho que concordar com este conceito do Prof. Volpato. Faz muito sentido.

        A minha inquietação sobre escolha de leituras começou qndo não tive mais tempo de fazer buscas periódicas (e uma seleção mais criteriosa, como fazia no doutorado).

        Se eu, no início de carreira, já não consigo manter o ritmo, como que os “seniores” fazem? há aulas na graduação e na pós, projetos, orientação em 3 níveis, reuniões, palestras, pareceres para revistas e FAPs, relatórios, campo, bancas… (em alguns casos) coordenações, supervisão de PD…

        Já estou no aguardo!

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